Sobre o fetiche dos números

       “Parece ser um fetiche mórbido a propensão das pessoas a tornarem complicado algo simples”

(Autor desconhecido)

Desde que comecei a apresentar artigos e dar aulas, tenho recebido muitas perguntas de aquaristas sobre parâmetros ideais do aquário plantado. A grande maioria delas é impossível de ser respondida de imediato porque é praticamente impossível mensurar em números a demanda de um ecossistema por recursos e energia e então acabo devolvendo a questão com um caminhão de outras perguntas que tentam pelo menos dar uma ideia da taxa metabólica do sistema. Mas depois de tantos contatos dessa natureza, percebi que já era hora de falarmos sobre isso de maneira a instruir os aquaristas em relação a um aspecto essencial e muito pouco estudado (para a minha surpresa), a análise qualitativa do aquário.

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Figura 1 – Maleta de testes próprios para o aquário

Mas por que não existem números ideias? Vamos pensar no corpo humano. Há um consenso sobre o consumo ideal de 2000 Kcal para um adulto, mas pensando bem, será que isso atende a todos de maneira adequada? E se for um idoso sedentário? Uma gestante? E se estivermos falando de atletas de alto rendimento? De qual modalidade esportiva? No meu caso eu consumia mais de 5000 Kcal diárias em época de competição e ainda assim perdi 8 Kg em apenas um mês e minha demanda por sódio, potássio, magnésio, cálcio e proteínas era várias vezes superior à de um adulto não atleta. Então para que serve a referência de 2000 Kcal diárias para as pessoas? Bem, serve exatamente para isso, como uma mera referência. A partir daí é preciso saber se o indivíduo com características especiais deve suplementar ou restringir essa referência. Contudo, de forma geral, esse número acaba atendendo grande parte da população humana por se enquadrar num padrão biológico de consumo.

Já um aquário, um legítimo ecossistema com todas as complexidades de um organismo vivo, apresenta muito mais variabilidade na taxa metabólica que um organismo padrão com necessidades conhecidas o que torna totalmente impraticável determinar sua demanda ideal porque ela depende de múltiplos fatores como tipo e densidade de flora, ritmo biológico imposto pela intensidade luminosa e fotoperíodo, capacidade fértil do substrato que pode variar com sua idade e condições químicas do aquário, características químicas da água, inclusive a de reposição, carga intrínseca de decomposição oriunda de dejetos de animais e morte de órgãos vegetais, atividade microbiológica tanto do biofiltro quanto da rizosfera e muitos e muitos outros fatores. Mas apesar disso, há uma multidão de aquaristas procurando por esses números ideais como se houvesse uma receita de sucesso que atenda a todas as plantas igualmente sem provocar algas e gastam muito mais dinheiro com testes do que com fertilizantes ou iluminação de qualidade. Os números desses testes não significam nada analisados isoladamente. O que significa obter 0,3 mg/L de nitrato, 0,1 mg/L de fosfatos ou X,YZ de amônia? Isso quando mostram algum resultado porque é comum que eles apresentem zero em todas as medições num aquário plantado. Como saber se isso é muito ou pouco? Nós não sabemos e ninguém mais sabe. E é interessante como muitos aquaristas sabem de cor os números de nitratos e fosfatos de seus aquários, mas quando perguntamos sobre o CO2, o parâmetro mais importante do aquário plantado, eles respondem que o drop checker está “verdinho” como manda o manual. Bem, já falamos sobre os drop checkers em outro artigo e não vamos discutir sobre seus problemas aqui novamente, mas essa conduta invariavelmente vai levar o aquarista ao fracasso.

Não sou contra os testes. Eles são úteis como analisadores profiláticos e para detectar problemas específicos, muito específicos. Vai montar um aquário com muitos troncos e raízes? Um teste de amônia, nitrito e nitrato pode ajudar a monitorar o estabelecimento da nitrificação no biofiltro e ajudar a perceber se o equilíbrio do sistema está sendo alcançado. Os números realmente não importam, o que importa é ver os números de um decaindo enquanto de outros sobem, apenas isso, mas 0,35 mg/L de nitrito não significa nada. O que vai ser necessário é estudar o processo da nitrificação para saber como interpretar o movimento desses números. Isso infelizmente muito poucos fazem, as pessoas preferem fórmulas prontas, algum critério concreto de julgamento. Isso pode ser um fetiche para fazer a coisa parecer mais complicada do que realmente é ou também pode ser um esforço ingênuo de tentar fazer a coisa parecer mais simples do que realmente é. De qualquer forma, o caminho é outro.

Parâmetros que realmente precisam ser medidos por razões já extensamente explicadas no meu livro 1 são o pH, o KH, o GH e o CO2. Mas mesmo esses números não dizem muita coisa sozinhos, é preciso analisá-los em conjunto com diversos outros fatores

Mas como saber se a fertilização está adequada ao sistema? Como saber se o biofiltro está operando de maneira plena e eficiente? E então somos introduzidos no verdadeiro âmago do aquarismo plantado. É preciso estudar e aprender a interpretar os fenômenos indicativos do que vai bem e do que vai mal. É quando o aquarista deixa de ser um aquarista cego que tateia números para se tornar um aquarista fenomenológico. Em suma, ele literalmente analisa fenômenos, porque, de fato, são eles que importam. É um aquarismo mais pragmático, mais eficiente e mais prazeroso porque o aquário deixa de ser um laboratório e passa a ser um ecossistema real.

Certa vez, numa das aulas que dei me perguntaram se já existia ou se já era possível inventar algo que pudesse medir, monitorar e dosar exatamente a quantidade de recursos (luz, nutrientes, CO2 e outros parâmetros químicos) que um aquário estivesse demandando. Para a felicidade do hobby, não acho possível inventarem algo desse tipo, pois teria de ser um super computador e, mesmo que pudesse existir, o hobby seria arruinado porque conseguiriam automatizar justamente o que há de mais valioso no aquarismo plantado, nosso pacto com a natureza, pois não teríamos mais que aprender e ler sua linguagem na forma de fenômenos. Isso pode parecer romântico, mas qual seria o propósito de ter um aquário plantado fascinante em nossas casas que não fomos nós que criamos? No fim das contas só iríamos encontrar mais uma coisa para nos servir sem precisar dar nada de nós em troca a não ser alguma pequena fortuna em tranqueiras tecnológicas.
Então por onde os aquaristas devem começar para se tornarem bons fenomenológicos?

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Figura 2 – Eleocharis apresentando problemas nutricionais.

As pessoas devem aprender com muito afinco questões fundamentais sobre a fotossíntese, nutrição vegetal e sinais de carências nutricionais. Já é um ótimo começo. Uma vez eu disse que lojas de aquarismo plantado deveriam vender livros de botânica e me disseram que por esse grau de complexidade as pessoas se afastariam do hobby. Bem, por incrível que pareça, cultivadores de maconha amadores que nem ganham dinheiro com isso (que já me procuraram para tirar dúvidas muito específicas e avançadas principalmente sobre hormônios e aspectos da senescência) possuem um conhecimento impressionante de botânica (eles conhecem os livros pelos autores!) e levam o cultivo como hobby, por que aquaristas não podem ter? Por que não cobrar um conhecimento decente de botânica básica de um público cujo principal interesse é manter plantas sadias e vigorosas em um ecossistema tão adverso como o ambiente imerso? No mínimo, teríamos de ter o dobro de conhecimento deles! E o mais interessante é que eles não conhecem números, eles são “experts” em analisar a qualidade das folhas, justamente o que deveríamos aprender. É um conhecimento puramente qualitativo baseado em conhecimento científico.

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Figura 3 – Pogostemon helferii apresentando problemas nutricionais nas folhas da base.

 

Um recurso valioso para os aquaristas é aprender a formar hipóteses. Muitos dos que me procuram não sabem o que precisam ou não sabem nem se os números que leram nos testes representam problemas. Uma vez uma pessoa me trouxe um valor X de fosfatos e disse ter empregado removedores de fosfatos a partir do que leu. Mas quando questionei sobre qual o problema do fosfato, qual o fenômeno que precisaria ser interpretado e corrigido, ele não soube dizer. Esse tipo de conduta enxerga problemas onde não há, mas porque tateou números, acredita-se sempre que há algum problema. É preciso saber entender a questão e, para entender a questão é preciso entender o problema. O que acontece é que muitas pessoas não sabem identificar o problema e então buscam números esperando que eles podem dizer alguma coisa. Quase sempre depois disso gasta-se dinheiro com medidas que não funcionam contra fenômenos que até podem ser normais como o próprio removedor de fosfato, carvão ativado, algicidas, filtros UV, ozonizadores e tudo o mais que acaba transformando o aquário numa grande confusão decorrente de uma simples cegueira técnica.

Outro grande erro comumente praticado por aquaristas de boa vontade é considerar as características de ambientes aquáticos naturais ao pé da letra para o aquário. Normalmente quem chega nesse ponto já possui dúvidas avançadas e acaba buscando informação em artigos produzidos a partir de ecossistemas naturais. É preciso tomar muito cuidado com isso porque as variáveis desses ecossistemas são diferentes das variáveis encontradas nos aquários. É por essa razão que sempre digo que aquários são ecossistemas confinados e artificiais. Nos ecossistemas naturais, por exemplo, o CO2 e a luz são fatores relativamente constantes enquanto que no aquário são altamente variáveis. Isso por si só já produz dois contextos muito diferentes. Aceitar essas informações científicas como verdadeiras para o aquário é muito perigoso e requer uma leitura mais especializada capaz de relativizar os dados e separar o que é aplicável do que não é (um desses aspectos já foi estudado em um artigo anterior sobre a importância do CO2 para o aquário plantado).

A rotina do aquarista deve incluir uma observação metódica a procura de sinais específicos de desequilíbrio, como presença de algas (quais tipos, se estão setorizadas, se estão em surto, se estão isoladas e controladas), presença de carências nutricionais (em quais plantas, se está setorizada, se tem algas associadas), velocidade de crescimento das plantas (se há pontos em que o crescimento é menor, se há demora na rebrotação após as podas), se os peixes estão bem (se estão se alimentando normalmente, se há espécies ou indivíduos que não conseguem competir pelo alimento, se há natação irregular) e seguida monitorar os parâmetros fundamentais (pH, KH, CO2, GH, vazão do biofiltro, temperatura). A fertilização deve ter um regime constante e as manutenções também e sempre que intervenções forem feitas como podas, limpeza de filtro, alteração de hardscape, inclusão de novos peixes, troca de lâmpadas, troca de fertilizante, etc nunca devem ser feitos ao mesmo tempo para que, caso haja algum desequilíbrio, saber qual a causa mais provável. Esse tipo de relacionamento é o que vai construir uma experiência sólida no hobby e uma relação promissora com o aquário que tende a se repetir nas montagens futuras uma vez que se estabelece um processo muito particular de manutenção do sistema. O aquarista verá também que há muito menos esforço de trabalho do que se tinha antes, embora haja muito mais esforço de manutenção. Trabalho e manutenção são coisas diferentes, em um se põe energia para funcionar, para salvar o sistema, e em outro se põe energia para continuar funcionando.

 

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Figura 4 – Flora de um aquário plantado saudável e equilibrado, sem sintomas de desnutrição aparentes.

 

Além disso, é muito interessante que as pessoas tentem descobrir informações relevantes das plantas que pretende ter ou já tem em seu aquário, como sua origem geográfica, condições de vida em ambiente selvagem e características que assumem sob as condições do aquário (como reagem às podas, à intensidade luminosa, às correntes de água, condições químicas, qual aspecto toma quando sofre carências nutricionais, etc). Essas informações vão ajudar a nortear o projeto que está construindo e tornará evidente que determinadas plantas não serão bem atendidas em determinados tipos de projeto. Isso é o que torna o envolvimento com o aquário plantado muito fascinante e construtivo, as coisas precisam ser descobertas, analisadas, experimentadas e postas em teste.

Não queremos que ninguém resolva esse desafio para nós, é um “problema” que queremos ter. Quem não quer ter infelizmente está no hobby errado.

** O texto acima é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Aquabase.