A Razão de Redfield – esclarecimentos gerais
Por Eduardo Fonseca Jr
15/01/2019
A teoria de Redfield não é mais uma grande novidade no aquarismo plantado há muitos anos. O acesso à internet possibilitou que muitos aquaristas interessados buscassem respostas em artigos científicos e a Razão de Redfield acabou se tornando uma teoria relativamente famosa no nosso hobby. Contudo, como qualquer teoria, seus fundamentos precisam ser corretamente compreendidos para somente então serem resinificados no contexto do ecossistema confinado do aquário. Como muitos dos aquaristas não são profissionais das Ciências Biológicas, alguns detalhes fundamentais passam despercebidos e as informações são passadas a diante para o resto do público de maneira incompleta, não adaptada ou até mesmo errada. Tem se tornado comum receber dúvidas ou afirmações equivocadas das pessoas sobre essa teoria, o que torna pertinente falar um pouco dela na forma de um artigo e esclarecer abertamente seus fundamentos.
Vamos começar do começo.
Alfred Redfield foi um fisiologista que constatou, por meio de estudos e pesquisas nos oceanos na década de 30, que a proporção de carbono, nitrogênio e fósforo (106:16:1 C:N:P, ou 106 de C para cada 16 de N para cada 1 de P) era mais ou menos constante em todos os oceanos do globo e que o plâncton, as algas marinhas unicelulares pelágicas (livres na coluna d’água), continham essa mesma proporção no organismo celular. Não foi em si uma descoberta importante, o que era realmente importante foram as questões que ele levantou a partir disso:
O plâncton apresenta essa mesma proporção por razões exógenas (o ambiente externo sendo a causa)? Se as causas são exógenas, então o plâncton deveria sobreviver em condições com proporções diferentes. Bem, em condições com proporções diferentes eles morrem, logo, a proporção orgânica do plâncton é endógena (é própria do organismo) e devem ter evoluído essa condição interna como adaptação ao ambiente externo por muitos milhões de anos.
Essa compreensão foi importante porque assim puderam esclarecer as rotas migratórias de animais que se alimentam de plâncton e as condições ambientais cíclicas necessárias para o mar se tornar mais ou menos produtivo. Mas haviam muito mais perguntas que respostas e Redfield não pôde responder a todas. Ele havia inaugurado um universo muito vasto para pesquisas posteriores que trazem essas respostas até hoje. A razão de C:O, por exemplo, também cumpre funções fisiológicas no ambiente e já se sabe que alguns tipos específicos de organismos como as diatomáceas (algas marrons unicelulares) surgem em razões específicas não só de C:N:P, mas também de silício na forma de silicatos. A própria razão veio sendo modificada com o avanço das pesquisas; já foi 16:1 (N:P), foi para 10:1, agora parece que está em 7:1 e pesquisadores chegam a apontar razões ligeiramente diferentes envolvendo muito mais nutrientes como Ca, K, etc tornando as variáveis muito mais complexas do que se havia imaginado.
Figura 1 – O surgimento persistente de cianobactérias é atribuído a uma razão baixa de N para P.
Será que todos os microrganismos dependem dessas razões externas para corresponder às internas e formarem colônias? Os aquaristas mais atentos que trouxeram essa teoria para o aquário plantado apostaram que sim, porque perceberam que alguns problemas com algas podiam ser resolvidos com mais de um nutriente específico em relação a outro, geralmente na relação entre N e P. Mas agora começam os problemas.
As chances da teoria das proporções de nutrientes serem verdade para os ambientes de água doce são muito grandes, mas a proporção numérica específica de 16:1 de N:P (omite-se o C por razões práticas) se aplica tão somente ao plâncton marinho. A maioria dos aquaristas que buscam aplicar a teoria ao aquário pensam que as plantas necessitam de 16:1 para viverem. Mas 16:1 não é para a proliferação de algas? Esse é o primeiro equívoco. Não há nenhuma lógica em correlacionar algas unicelulares marinhas com plantas superiores de água doce, portanto, jamais se deve aplicar a Razão de Redfield para o aquário; o que fizemos foi emprestar seu raciocínio e cabe a nós agora descobrir nossas próprias razões. Aplicar Redfield no aquário plantado é um grande engano disfarçado de sofisticação.
Figura 2 – Algas verdes tendem a surgir em razões muito elevadas de N:P.
Outro grande erro é considerar a razão levando-se em conta a concentração do nutriente molecular, na forma de nitrato, amônia, fosfato, etc. As pessoas medem o nitrato, medem o fosfato e tentam alcançar uma proporção de 10 mg/L de NO3 para cada 1 mg/L de PO4. Está fundamentalmente errado, pois a razão se refere à quantidade atômica em mol/L, não importa em qual forma química os nutrientes estejam, e nenhum teste é capaz de medir a concentração atômica. É preciso fazer montanhas de cálculos estequiométricos baseados na massa atômica dos elementos envolvidos. Não é uma tarefa muito amigável. Uma razão molecular de 10 mg/L de nitrato para 1 mg/L de fosfato, por exemplo, corresponde a uma razão atômica aproximada de apenas 6:1.
O erro final e definitivo é tentar obter as medidas a partir de testes sabendo que eles não conseguem trazer números reais por não compensarem as porções assimiladas pelas plantas, adsorvidas pelas rochas e pelo substrato, precipitadas pelo pH, etc.
Figura 3 – Há indícios de que a alga peteca (algas vermelhas) surgem como resultado de desequilíbrio numa razão não muito bem conhecida de Ca:Mg entre outros fatores.
A maneira correta de pensar sobre a teoria aplicada ao aquário plantado é despertar o entendimento de que as algas, como organismos dependentes de determinadas condições químicas (como também condições físicas em alguns casos), devem funcionar como bio-indicadores de condições. Quais as condições específicas de cada alga para sabermos onde agir? Essa questão inaugura a teoria dos micro habitats, conforme já escrevi sobre isso em um artigo anterior, e ainda engatinha nas nossas mãos. Nós aquaristas ainda não sabemos exatamente quais são todas essas condições, é uma coisa totalmente nova, mas já existem aquaristas muito bem preparados que estão conseguindo extrair conhecimento de suas observações práticas. Por exemplo, já se sabe que o aquário plantado vive muito bem e relativamente livre de algas numa razão atômica de 4:1. Razões superiores trazem alguns tipos de algas verdes, razões inferiores trazem cianobactérias. Razões superiores de nitritos em relação a nitratos trazem outros tipos de algas verdes e também algas marrons. Há indícios de que determinadas razões de Ca:Mg favoreçam algas petecas (algas vermelhas), mas isso não está muito bem elucidado e depende de muita pesquisa direcionada e testes com diferentes aquários para entendermos melhor.
Com relação aos números, é difícil ditar as doses corretas de fertilizantes porque, de todos os disponíveis no mercado, apenas um fabricante abre totalmente sua composição e concentração ao público, a Seachem. Com a primeira linha deles, a Flourish, se obtém a razão atômica de 4:1 de N:P aplicando-se 2,5 ml de P para cada 1 ml de N. Para a linha nova, a Aquavitro, são 2 ml de P para cada 1 ml de N. Os outros fabricantes infelizmente não disponibilizam seus números, então é impossível saber como acertar a proporção sem testar no aquário e observar quais algas tendem a predominar mais.
Figura 4 – É bem conhecido o fato de que problemas na filtragem, ao elevar a razão nitrito:nitrato, cause surtos de algas marrons.
Apesar da razão aplicada ao aquário plantado ajudar muito a equilibrar o sistema, ela corresponde a menos de 10% dos problemas com algas. A maioria deles são decorrentes de deficiências com CO2, problemas na filtragem e má nutrição das plantas, nessa ordem. A razão de nutrientes é um conceito é muito avançado no hobby porque ele vai além da premissa de nutrir bem as plantas, ela transcende o estudo da química e da botânica e abre espaço para a relação de ambos no ecossistema. Quando me dizem que as plantas vão indo muito bem (e realmente estão muito bem) e mesmo assim se queixam de problemas com algas eu finalmente abro a caixa preta e digo, como está a sua razão N:P? E são muito, muito raros os que sabem responder. Não é que seja um segredo, mas é que existe tanta coisa antes disso que precisa ser observada como fundamento que tocamos nesse assunto somente quando necessário devido à complexidade do tema. Muitas coisas técnicas precisam ser explicadas para introduzir as pessoas nessa questão e, quando o fazemos, é comum que as pessoas comecem a atribuir todos os seus problemas com algas a esse mecanismo e outros detalhes começam a ser ignorados.
A teoria de Redfield nos mostra o quão complexo são as dinâmicas nos ecossistemas aquáticos e o quão imbricadas são as relações entre ambiente e organismos que nele vivem. É algo tão complexo e misterioso que tentar compreender totalmente suas causas é como tentar descobrir quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. Como aquaristas, nos cabe entender as perguntas antes das respostas e aprendermos a extrair conhecimento e soluções da observação. Sejam bem vindos, vocês foram introduzidos na Teoria dos Micro habitats. É onde até os mais experientes aquaristas sentem um terrível vazio de dúvida, sabemos muito pouco e o aquário plantado evoluirá muito a partir daqui.
** O texto acima é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Aquabase.