Para onde seu cavalo iria sem você por perto?

Por Eduardo Fonseca Jr

23/06/2020

 

De todas as leis naturais que o homem tem observado a entropia é provavelmente a mais irrefutável de todas. Ela se aplica a todos os aspectos da realidade e domínios imagináveis: na economia, na política, nas ciências biológicas, na química, na física, na filosofia, na arte e até na religião. Na verdade, a entropia é um jargão criado pela termodinâmica e outros domínios de conhecimento acabam usando outras palavras para descrevê-la, como a homeostase na biologia ou aleatoriedade nas ciências dos números, mas nenhum conceito derivado consegue descrever melhor a ideia que se traduz no caos natural das coisas, o repouso aritmético da natureza, tanto quanto a concepção de entropia. Vamos entender o que isso significa para depois levá-los até onde quero chegar.

De forma bastante básica, porém fundamental, a entropia se traduz no estado mais natural possível de alguma coisa, seu ponto de repouso, ponto zero, sem que nenhuma energia externa ao sistema influencie a sua ordem (na verdade, sua desordem. Aqui vamos chamar estado natural das coisas de desordem em contrapartida ao estado artificialmente organizado, previsível e não aleatório criado pelo homem). Um cubo de gelo deixado à temperatura ambiente, por exemplo, tende a derreter. O ponto máximo de entropia do gelo em condições normais é derreter, pois para mantê-lo na forma de gelo seria preciso um fornecimento contínuo de energia na forma de frio para superar (energia maior ou igual a zero na diferença contra as condições normais de temperatura ambiente) a temperatura ambiente. Em outras palavras, para manter a ordem de um dado sistema é preciso fornecer energia, caso contrário, o sistema tende à desordem. O termo ordem x desordem se refere ao esforço de manter um sistema atipicamente diferente de suas condições ambientais, de forma que quanto mais estruturado, organizado às custas de energia, mais ordenado, ao passo que quanto mais isso se degrada ao seu estado natural, mais desordenado, caótico ou aleatório. Quando isso acontece, essa coisa alcança seu grau máximo de entropia. A entropia aumenta no sentido do caos, ou como se diz, “tudo volta ao pó” ou “sob o tempo tudo perece”. Quando eu era lutador meu sensei costumava dizer que se manter forte é como por água para esquentar na chaleira; ‘se não receber calor constante, esfria.” Ele quis dizer que a entropia do corpo humano é degradar a saúde na medida que se dedica menos energia para mantê-lo forte.

A própria filosofia wabi-sabi que rege sobre o aspecto artístico da aquapaisagismo consiste fundamentalmente na aleatoriedade natural dos ambientes selvagens, é entropia em sua forma mais visceral. Mas conseguir construir essa “aleatoriedade organizada”, conseguir reproduzir “a perfeição decorrente da imperfeição” nos layouts acaba se tornando uma atividade artística que demanda muita sensibilidade para que não se torne evidente qualquer “ordem artificial” como produto da mente humana criativa. Basicamente, as árvores crescem aleatoriamente, a água escorre pelos planos mais baixos, as pedras rolam e estacionam nas curvas dos vales etc. Não há ordem, é tudo um tipo de aleatoriedade organizada, mas não é o tipo de ordem que possa ser prevista por fórmulas matemáticas.

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Figura 1 – Ambientes naturais se desenvolvem de forma aleatória regida por fenômenos aleatórios. A atividade humana tenta organizar os eventos. Quanto tempo a floresta da direita levaria para ficar como a da esquerda se faltasse manutenção? A selva repousa em sua entropia, enquanto a da direita tende a ela.

 

Mas não é sobre isso que dedico este artigo. Quero entrar na parte técnica, quero falar de dinâmicas e mecanismos. Vamos continuar.

Uma vez que a entropia está intimamente relacionada com a energia, podemos afirmar com muita segurança três ideias centrais:

1-      Quanto mais um sistema depende de energia para se manter em ordem, mais forte sua tendência à entropia, ou seja, mais facilmente ele se desorganiza. Basta um pequeno descuido. Pense numa mola ou elástico sendo segurado esticado: assim que a energia cessar, ele volta ao seu estado natural.

2-      Quanto mais energia é aplicada ao sistema de forma a distanciá-lo cada vez mais de sua entropia, mais frágil se torna o sistema. Ou como se diz “quanto maior o salto, maior a queda”. Confiar a robustez de um sistema “esticado” totalmente apoiado no fornecimento contínuo de energia não é coerente, não é um sistema robusto, é um sistema frágil. Basta um piscar de olhos sem energia e o sistema chicoteará violentamente em direção à entropia. Imaginem Usain Bolt interrompendo seus treinamentos por uma semana por causa de uma lesão. Ele certamente perderá meses de condicionamento. Isso nos leva à terceira ideia.

3-      É preciso dezenas de vezes mais energia e tempo para repor a ordem em um sistema do que é preciso para desorganizá-lo. A relação não é linear, é assimétrica, e em algumas condições a perda da ordem é irreversível. Deixe um ovo se espatifar no chão e experimente tentar devolver-lhe a forma original. Ok, exemplo infeliz. Então pense nos dinossauros. Eles não foram completamente extintos. Espécies com menos de 9kg de massa corporal sobreviveram e evoluíram às aves de atualmente, mas provavelmente nunca mais surgirá um novo tiranossauro na face da terra. O tiranossauro evoluiu tanto (energia evolutiva) que ficou extremamente distante da entropia biológica, suas condições estavam muito “esticadas”.

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Figura 2 – Relação fragilidade x dependência de energia de um sistema hipotético

Portanto, vamos concluir que quando maior, mais complexo, mais energético, mais especializado um sistema, mais frágil este se torna, mais vulnerável à entropia. As vezes tão vulnerável que de uma hora para outra entra em extinção, como nosso querido tiranossauro (tamanho extremamente dependente do ambiente), os recifes de corais (especializações ambientais extremamente dependentes), reinos multiculturais como Roma (complexidades que acabam se tornando insustentáveis) e fusões nucleares em estrelas (energética extrema, porém finita). E não pense que a mola pode arrebentar. A mola é a lei, a entropia é soberana. Por mais que se tente, não se “desfrita” um ovo. Quem arrebenta é o fornecimento de energia, a estrutura colapsa, porque os sistemas são finitos e idealizados, enquanto a natureza é inexorável. A entropia está para as coisas como a gravidade está para o avião. Ele só está no ar por causa das turbinas (eu odeio pensar nisso quando estou no ar), mas tão logo elas pifem (Deus me livre) a gravidade fará seu trabalho e trará o avião para onde ele deveria estar, no chão (entropia máxima).

Agora podemos falar de aquários.

Conforme enfaticamente descrevi no Livro 2 sobre a relação energia x ritmo, o que eu considero o cerne central do equilíbrio sensível do aquário plantado, a energia é quem dita o ritmo. Não quero perder muito tempo explicando esse conceito aqui. Isso já está bem detalhado no livro e recheado de figuras (para quem gosta de livros com figuras), mas é preciso entender de onde vem a dificuldade de manter um aquário exuberante e saudável, um aquário em ORDEM. Vem, em grande parte, da dependência da energia aplicada ao sistema e não da quantidade de energia em si.

Os alunos costumam me ouvir dizer nas aulas que manter aquários plantados exigentes e competitivos (no caso de projetos com finalidade para concursos) é como andar no fio da navalha. Depois de tudo o que discorremos sobre a entropia, quero que façam um exercício de raciocínio sobre o que significa um sistema exigente. Voltem a ler quando concluírem o pensamento…

Se são exigentes são dependentes! E quanto mais dependentes, mais complexos. É preciso muita energia na forma de luz, nutrientes, CO2, O2, rotinas de manutenção e limpeza, podas e, como se não bastasse, é preciso acertar até na relação entre todas essas coisas, principalmente na relação entre luz : CO2 : nutrientes. Acha que acabou a complexidade? Não, ainda tem a relação N : P e já tem gente falando em relação Ca : Mg. Não estou dizendo essas coisas para desanimar os iniciantes, pelo contrário, estou tentando mostrar onde está o calcanhar de Aquiles e fazer as pessoas pensarem sobre o que elas podem assumir para si, dentro de suas limitações de tempo, dinheiro, disponibilidade e disposição ao estudo etc. Enfim, é preciso se planejar e começar sem “esticar” demais seus projetos. Comece simples, comece fácil, comece próximo da entropia, com sistemas que não demandem tanta energia, que não sejam tão dependentes e se familiarize-se com a tríade energia x ritmo x consumo para então começar a “esticar” a dificuldade ciente da energia (sua constância e consistência) necessária que DEPENDERÁ de seus esforços. Definitivamente, menos é mais.

Mas para onde vai a energia num aquário plantado? Como em qualquer sistema, a energia ou é dissipada para sistemas vizinhos onde não faz mais efeito benéfico sobre a ordem ou é acumulada de forma latente. O primeiro caso é fácil de entender quando se tem ciência da precipitação de elementos, por exemplo. O cálcio tende a precipitar o fósforo que tende a precipitar o ferro e os sintomas de carência de algum desses elementos podem ser sentidos mesmo se adicionando mais do que parece estar em falta. Há muitos detalhes sobre isso no Livro 1. Até pode ser possível remediar a falta de P adicionando mais P, mas se este estiver sendo indisponibilizado pelo excesso da ação do Ca, por exemplo, há um grande desperdício de energia no sistema, o que nos leva ao segundo problema: o acúmulo latente. Em determinadas condições de pH esse P será liberado do Ca e um excesso de energia desordenado poderá causar grandes problemas a longo prazo. Isso é só um exemplo. Muitas coisas desse tipo podem acontecer num ecossistema aquático devido a sua complexidade bio-físico-química. Então o que devemos fazer para evitar isso?

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Figura 3 – Aquário muito distante da entropia, muito dependente de energia.

Bom, se o sistema está funcionando adequadamente, não é inteligente se antecipar a nada. Ele pode ter encontrado algum ponto de equilíbrio que torna essas condições inofensivas, algo como regeneração de ciclos por si só sem depender do aquarista. Ótimo! Se isso acontece então o sistema é um pouco menos frágil, pois ele depende de menos intervenção do que se poderia imaginar. No entanto se essa energia começa a “vazar” do sistema e a causar problemas, existem duas saídas: uma mais prática e outra não tanto, mas que pode ser interessante para alguns aquaristas ou até necessário para alguns sistemas.

 

A primeira é obviamente entender o que está errado e remediar e as vezes a melhor forma é dando um reset no sistema, zerar as variáveis e recomeçar. É nisso que se baseia o Método Estimativo de Tom Barr; oferecer toda a energia que o sistema precisa sem se preocupar com o excesso e no final de um dado período zerar o sistema e recomeçar o ciclo. Isso causa um choque ambiental no aquário, mas pode resolver ou ajudar a resolver variáveis crônicas. Contudo, de nada adianta fazer isso sem descobrir o que estava errado. Você arranca a tiririca hoje e amanhã lá estará ela de novo sob seus sapatos.

 

A segunda é justamente permitir que o sistema busque sua entropia de maneira controlada. Em resumo, mantém-se a fertilização, mantém a iluminação e o CO2, em suma, mantém o fornecimento de energia, mas encerra momentaneamente as rotinas de manutenção como TPA, limpeza etc. O movimento da entropia do sistema funcionará como uma lente de aumento sobre os problemas, porque o nível de desordem se ampliará, ganhará evidência. Isso precisa ser feito por tempo suficiente para as condições se ajustarem e o problema se estabilizar, culminando na entropia máxima daquela dada condição. Que tipo de alga predomina? Qual planta definitivamente não está bem? Qual parte do aquário não consegue ter o mesmo rendimento do restante? Existe um conjunto de sinais? Agora pode ficar mais fácil identificar o problema e saber com mais precisão onde agir ao invés de ficar dando voltas e voltas com muitas intervenções seguidas de outras que nunca conseguem tempo suficiente para surtirem efeito, seja negativo ou positivo. A maneira mais fácil de saber se um balde está trincado é enchendo-o de água e identificando os vazamentos. Então é exatamente isso, trata-se de permitir que a energia vaze pelas trincas da distribuição de energia e então ver para onde se desloca a entropia.

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Figura 4 – Ecossistema natural em estado de entropia.

Não se assuste se, passado algum tempo, você perceber que os problemas se resolveram sozinhos! Isso pode acontecer como já aconteceu com muita gente que de repente resolve desistir do aquário, mas continua fornecendo energia somente para manter as plantas vivas para a próxima montagem. Isso significa que as intervenções é que estão causando desordem, não estão permitindo que o próprio sistema feche algum ciclo importante. Essa problemática do excesso de intervenção causando efeitos contrários ao desejado é chamado na medicina de iatrogenia. Uma maneira muito eficiente de morrer mais rápido que a doença poderia matar é estar rodeado de médicos particulares estando sujeito a ser medicado ou sofrer cirurgias contra qualquer tosse ou dor abdominal que o paciente apresente. De forma análoga, isso costuma acontecer com aquários muito dependentes de injeção de reserva alcalina e passam por muitas TPAs; duas semanas sem TPA e o KH sobe o suficiente para se manter estável e fazer o biofiltro funcionar como deveria, as vezes até diminuindo a incidência de algas. O excesso de intervenção tende a ver problemas que não existem ou a aumentá-los e isso aumenta a fragilidade do sistema.

 

Mas cuidado com esse método. Somente faça isso se tiver alguma noção de onde está a entropia do seu aquário. Se porventura a entropia estiver muito voltada para um surto incontrolável de algas do tipo cianobactérias ou algas negras do tipo petecas, a entropia alcançada poderá ser um caminho sem volta. Lembre-se que existem eventos de extinção em toda essa história. Por um lado, é bom porque podemos descobrir que onde o sistema é frágil e e onde estão as trincas na estrutura de distribuição de energia e, por outro lado, pode ser péssimo porque todo o investimento pode ser perdido. Nesses casos é melhor optar pelo primeiro caminho descrito acima, pela intervenção direta. Mas é preciso saber por onde começar e como agir.

 

 

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Figura 5 – Observe que em qualquer tendência de favorecimento é possível alcançar o desempenho (centro) às custas de energia. Contudo, o equilíbrio pode estar sendo atraído para uma zona de entropia problemática que constantemente perturba o sistema.

 

Espero que esse conceito de entropia abra as mentes dos aquaristas sobre o estado natural das coisas e que despertem a ideia de que os lindos aquários da internet são qualquer coisa, menos naturais. Podemos afirmar isso com muita certeza porque a entropia de ecossistemas naturais se desloca sempre a favor das algas e raramente a favor das plantas. São eventos muito raros aqueles que favorecem as plantas. O aquário plantado é uma mola esticada sempre pronta para chicotear e pode ser muito útil saber para que lado a natureza dentro do seu aquário tende a ir, seu ponto de descanso, o ponto zero, sua entropia.
Esse é um aspecto inconsciente da natureza, é uma lei e é implacável e é preciso muita energia para segurá-la em seu estado ordenado, artificial, conforme nossas vontades. Pense assim: se seu aquário fosse um cavalo, para onde ele iria sem você por perto?

** O texto acima é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Aquabase.