O que é um aquário plantado? Separando as ovelhas das cabras
O que é um aquário plantado? Separando as ovelhas das cabras
Por Eduardo Fonseca
29/03/2022
Depois de tantos anos ensinando o aquário plantado em aulas, artigos, livros e redes sociais, percebi que ainda tropeço numa dificuldade bastante recorrente de comunicação com as pessoas que me procuram para tirar dúvidas ou “pedir dicas”. Em muitos casos, acontece de eu fazer uma imagem particular dos aquários que as pessoas descrevem de uma forma totalmente diferente do que são na realidade. Eu já vi de tudo, até cavalo tossir. Então fica difícil partir de um ponto teórico em comum a partir do qual devem ser prescritas condutas práticas, porque, na verdade, muitas dessas pessoas nem aquário plantado tem. Elas têm qualquer outra coisa, mas não um aquário plantado. Sinto que isso é uma falha terrível da minha parte. Talvez tenha faltado uma introdução apropriada ao aquário plantado, mas talvez tenha faltado também essa noção de que algumas pessoas simplesmente não entendem, por falta de experiência, os limites do que é um aquário plantado.
Desde o começo eu imaginei minhas aulas, meus livros e artigos como um “arrebanhamento” o qual eu conduziria até a fonte de água e deveria cuidar para que nenhuma das ovelhas se desgarrasse no processo de estudo por falta de compreensão dos fundamentos. Mas por que alguns simplesmente não conseguem se arrebanhar? Recentemente venho percebendo que é porque simplesmente não são ovelhas, essas pessoas estão se metendo no rebanho errado e essa falha é minha por nunca ter delimitado, em nenhuma parte das minhas obras, os limites das definições do aquário plantado. Dessa vez quero dedicar esse artigo para separar as ovelhas das cabras.
Por que é importante que isso seja feito? Porque a teoria e as condutas que destaco nas minhas obras não funcionam em todos os sistemas por simplesmente terem plantas e é nesse ponto que a comunicação falha: quando chega a hora de dar a lã, as cabras já estão peladas. É evidente que há algo de errado. Precisamos definir o aquário plantado para saber em que medida se está lidando com um aquário plantado, um aquário de plantas, um aquário de baixa demanda ou um aquascaping. Só para citar um exemplo, certa vez uma pessoa me procurou para se queixar de seu KH que estava sempre baixo. A conduta era simples, use o buffer. Ele não podia usar o buffer porque tinha discos selvagens num aquário de 2 metros de comprimento por 60cm de altura e devia manter a água ácida com baixa luminosidade. Pedi uma foto desse aquário e havia apenas muitas ninféias e samambaias. A resposta não foi a que ele esperava: “você não tem um aquário plantado, meu amigo, você tem um aquário de discos com algumas plantas. Esqueça tudo o que eu teria a lhe dizer sobre aquários plantados, você é uma cabra.” Um segundo exemplo, outra pessoa me procurou para falar que suas plantas não estavam se desenvolvendo bem apesar da boa iluminação, fertilização, CO2 e substrato. Os parâmetros dele realmente eram muito razoáveis, mas ele se queixava de muitas algas filamentosas. Pedi uma foto do aquário e para minha surpresa era uma caixa de quase 1,8 m e um pequeno volume de plantas que daria para plantar no máximo uma caixa de 60 cm. “Sinto muito, amigo, você não tem um aquário plantado. Tudo o que eu tiver a lhe dizer não vai funcionar nessa configuração, você está na posição de uma cabra.”
Figura 1 – Um típico aquário com plantas comunitário, mas não corresponde a um aquário plantado.
O problema realmente existe. Não se trata de criar um Clube do Bolinha, mas de estabelecer os limites para as pessoas conseguirem se situar se estão dentro ou fora do aquário plantado, se são cabras ou ovelhas. Se elas devem se preocupar com as exigências de um aquário plantado inteiro enquanto um ecossistema complexo ou se devem simplesmente se preocupar em atender as exigências pontuais de alguma eventual planta presente no seu sistema.
Então vamos à descrição técnica. O que é um aquário plantado?
UM AQUÁRIO PLANTADO É UM SISTEMA QUE PRIORIZA O RENDIMENTO DA FISIOLOGIA VEGETAL.
Eu poderia resumir assim, mas há desdobramentos implícitos. Quando digo rendimento da fisiologia vegetal, isso significa que o sistema é dependente de energia e a intensidade dessa energia modula o seu rendimento por meio de um ritmo metabólico, podendo apresentar um ritmo mais lento ou mais acelerado. Se há metabolismo, se há consumo numa taxa além do que o sistema pode sustentar por si próprio (ou seja, é dependente de uma injeção externa contínua de recursos), então pode ser um aquário plantado. Para ser definitivamente um aquário plantado, esse rendimento ainda precisa ser priorizado e isso impõe restrições a todo o resto de coisas que não são plantas. O mínimo que se espera de um aquário plantado é muita massa vegetal com muito desempenho de crescimento que só pode ser sustentado, fundamentalmente, por uma concentração de CO2 muito superior ao natural. O CO2, como já descrevi inúmeras vezes, é a alma do aquário plantado.
Figura 2 – Um biótopo, muitas vezes, não se encaixa na assinatura de um aquário plantado.
É aqui que se abre uma fenda entre as cabras e as ovelhas. Um aquário comunitário com muitos peixes e algumas plantas como ornamento não é um aquário plantado porque não há prioridade ao rendimento vegetal e não se exige quase nenhum desempenho vegetal: é um aquário com plantas. Um diorama de galhos e raízes cuidadosamente colados com super-bonder forrados de musgos também não é um aquário plantado, é apenas um aquascaping sem rendimento vegetal. Podem atirar as facas agora porque vou defender esse fato. Aquascaping não é, necessariamente, aquário plantado. Nature aquarium não é, necessariamente, aquário plantado. Um biótopo não é, necessariamente, aquário plantado. Da mesma forma, um aquário plantado não é, necessariamente, um aquascaping (!!!).
Imagino que muitos aquaristas experientes discordem de mim e não vejo problemas nisso. Até acho bom que esse assunto não termine aqui, as pessoas precisam pensar sobre isso e estou aberto a contra-argumentações. Isso precisa ser explorado até pelo bem do mercado aquarista. Bem, pelo menos essa é a minha opinião. Quando uma pessoa entra numa loja a procura de um aquário plantado seria muito bom saber o que ela sabe sobre aquários plantados e se sabe o custo técnico disso. A distância entre o que ela quer e o que ela adquire é inversamente proporcional ao conhecimento que se tem sobre o que se quer a ponto de nem mesmo saber o que se quer!
Figura 3 – Toda forma de aquascaping se encaixa na assinatura de aquário plantado? Algumas vezes não.
Talvez esse artigo traga à tona muitas dúvidas ou comece uma pequena polêmica, mas essa delimitação pode finalmente situar as pessoas sobre o que elas querem de seus aquários e se o caminho do aquário plantado é o caminho que elas querem tomar. No aquário plantado nós esticamos a mola da distropia na medida do ritmo e essa injeção contínua de energia é no que consiste toda a dificuldade de conseguir um sistema sadio e produtivo. Um aquarista de plantado acaba se tornando um especialista em manipular ecossistemas, ele nem se importa muito com os peixes. Quando amadurece mais ainda, nem com as suas preferências de plantas ele se preocupa mais. Ele deixa de colecionar plantas e desenvolve um olhar para o todo, para o desempenho integral do seu sistema. Quando evolui seu lado artístico, pode empilhar suas habilidades de aquário plantado com a arte e criar aquascaping com plantados. Esses trabalhos passam na frente dos dioramas sem metabolismo aos olhos dos juízes, pelo menos assim se espera. É por isso que acho, sem “rasgação de seda”, que o Sensei Luca Galarraga é o melhor aquarista plantado do mundo. Ele não está entre os melhores, ele é o melhor. Ele consegue juntar toda a sua habilidade artística dentro de um sistema altamente exigente e o mantém equilibrado durante todo o período de vida do aquário com maestria. Ele pode ser não ser o melhor aquascaper do mundo, mas nunca vi um aquascaper do calibre dele ser tão bom aquarista plantado e é por essa consistência de duas grandes réguas que ele tem uma das maiores coleções de prêmios do mundo.
Mas isso traz um problema ao mercado: as pessoas acabam sendo inspiradas pelo aquascaping, mas não se interessam na mesma medida pelo aquarismo plantado. Na verdade, a maioria das pessoas acham que é a mesma coisa. Esse engano é uma tragédia. É como subir num ringue de boxe disposto a trocar socos e esquivas desprezando o trabalho de pernas: você será esmagado por dez rounds. E que vemos por aí são aquaristas jogando a toalha ou apostando na tecnologia como algum tipo de “arma secreta”, o “gancho decisivo do Rocky Balboa”, o “o golpe da garça” do mestre Miyagi que salva tudo o que estava perdido: o ozônio, a luz UV, o anti algas, a configuração perfeita do LED branco com vermelho, a resina removedora, o sal grosso atrás da porta. Esqueça, você será esmagado se não se priorizar ser um bom aquarista antes de um bom aquascaper. Antes de aprender a socar, é preciso aprender a trabalhar as pernas. Para sobreviver no ringue, convém comprar uma corda para pular antes das luvas para socar o saco, pode apostar.
Figura 4 – Talvez o aquário holandês seja a forma mais pura do aquário plantado.
Outro grande engano são os “low techs”. Não tenho nada contra os low techs, contanto que não os chamem de aquários plantados. Você pode enfiar quantas samambaias quiser e amarrar quantos musgos quiser num aquário de 20 litros sem CO2 com lâmpada LED de escrivaninha USB, ele não será nunca um aquário plantado. Apenas um aquário com plantas. Por quê? Mais uma vez, porque não há metabolismo, porque o consumo não excede os recursos próprios, porque não há desempenho vegetal. Não digo que é um sistema inferior a um aquário plantado. Já vi sistemas low techs maravilhosos que eu teria na minha casa e às vezes até prefiro um sistema assim a um aquário plantado exigente dependendo do meu momento pessoal, mas é um sistema diferente com uma assinatura de conduta diferente. Não há nada de errado com quem gosta de low techs e sabe que tem um low tech, mas quem tem um low tech e exige o rendimento de um aquário plantado achando que existe alguma fórmula secreta para tal sim, está muito errado, e precisa de algumas aulas de botânica para perceber a terrível incoerência desse pensamento.
Entre o aquarista low tech que exige demais de seu sistema e o aquascaper que fracassa por não conseguir controlar o ímpeto de seu aquário está o aquário plantado: não necessariamente artístico nem necessariamente exigente demais. O fundamento científico do aquário plantado se estende tanto para o low tech quanto para o aquascaping, mas não necessariamente se aplica a eles. Espero, a partir desse artigo, que as pessoas que acompanham meu trabalho consigam distinguir suas posições nesse contexto e sejam capazes de perceber a distância entre onde estão e onde gostariam de chegar. Não que o ponto A seja melhor ou pior que o ponto B, mas é essencial que se perceba que são pontos diferentes e muitas vezes incompatíveis.
Entendo que muitos aquários não poderão ser totalmente enquadrados num sistema plantado. Acredito que possa haver casos que não seja possível traçar uma linha nítida que separe uma coisa da outra, como um tabuleiro de xadrez. Entendo que algumas coisas ficariam na zona do cinza. Isso não importa, o aquarista precisa desenvolver a sensibilidade e a inteligência para separar o que lhe é relevante e o que não é em sua conduta técnica e conduzir seu sistema da melhor forma possível. Um iwagumi é um aquário plantado? Em alguns casos talvez não. E um biótopo densamente plantado com alto rendimento vegetal embora com algumas restrições? Acredito que muitos se enquadrariam num aquário plantado, mas não puramente um. Eu não quero abrir uma “classe” rígida de premissas que dite soberbamente o que é um aquário plantado ou não, mas somente delimitar, de forma prática, os sistemas que se enquadram numa determinada natureza de metabolismo que demande condutas mais específicas.
Se você está confuso sobre o que é e o que não é um aquário plantado, comece observando o que não é e entenda por que não é. A via negativa de construção de conhecimento também funciona. Note se tal sistema depende de iluminação provedora de fotossíntese, se depende de CO2, de substrato fértil, de fertilização, de filtragem biológica e se os parâmetros típicos concorrem com os ideais. Quanto mais concorrerem, mais longe de ser um aquário plantado. Ressalto mais uma vez que não é uma intenção de elitizar o aquário plantado. Já experimentou subir o KH para 8 com o objetivo de melhorar a filtragem biológica mantendo o pH menor que 7? Adivinha só, é impossível sem CO2 e não adianta gastar todo o seu salário com acidificantes ou enfiar xaxim no seu filtro. Esse é um prospecto das dúvidas que chegam até mim. Tenho o maior prazer em atender todas que eu saiba ajudar, mas antes é bom que as pessoas saibam para onde querem ir antes de me perguntarem de rotas.
