O método da partida no escuro
O método da partida no escuro
Por Eduardo Fonseca
11/01/2022
A partida no escuro consiste em montar o hardscape com substrato fértil, encher de água e manter o filtro operando sem fotoperíodo, sem CO2 e sem plantas presentes no sistema por um período que pode variar entre algumas semanas a mais de um mês com o intuito de já ter biologia nitrificante quando o aquário for plantado sob regime de fotoperíodo. E então temos uma pergunta: a partida no escuro realmente funciona ou é só mais uma teoria maluca sem muito fundamento? Vamos estudar como isso funciona nesse artigo.
A partida do aquário é o momento mais crítico da montagem. Nós fornecemos energia para um sistema que ainda não está pronto para aproveitá-la, mas depende dela para se adaptar. E justo nesse momento nós temos o pior vilão de todos, a amônia, e em grandes quantidades. De fato, as chances do aquário falhar na partida são muito grandes. Às vezes o projeto não é perdido, mas os problemas decorrentes dessas condições adversas colocam o aquarista numa rota muito mais longa e desinteressante até finalmente colocar seu aquário nos eixos.
Conforme já descrevi com mais detalhes no artigo de título “Como partir um aquário plantado” e também no Livro 3, a prioridade número um das partidas é fazer o biofiltro trabalhar o mais rapidamente possível para se livrar da amônia e assim evitar a combinação explosiva luz + amônia = surto de algas. E então alguns aquaristas sabiamente se perguntam: será que faz sentido partir o aquário no escuro para amadurecer o biofiltro primeiro e oferecer luz depois? Sim, faz muito sentido!
A partida clássica com o aquário imediatamente plantado, com luz e CO2, é complicada porque os parâmetros redutores para o desenvolvimento das plantas se opõem aos parâmetros mais oxidantes para o estabelecimento das colônias nitrificantes. O aquarista tenta ficar no meio, com uma ligeira prioridade para as colônias, pois de nada adianta plantas crescendo, produzindo metabolismo, e ao mesmo tempo competindo com as algas por espaço e recursos. As algas tendem a vencer essa disputa. Com base nisso, alguns aquaristas tentam partir seus aquários tomando emprestado filtros já maduros de outros aquários, para dar mais prioridade ao desenvolvimento das plantas.
Figura 1 – Problema bastante típico de partidas sob luz. As algas marrons indicam presença de nitrito que ainda não está sendo oxidada a nitrato.
Definitivamente, a prioridade nas partidas é a filtragem biológica e nesse sentido não deveríamos incomodar o sistema com metabolismo antes que ele seja capaz de reciclar seus resíduos. Em fato, esses resíduos não se referem somente à amônia, embora essa seja o mais prejudicial, mas também ao ferro solúvel ainda muito móvel no substrato, assim como o alumínio, manganês e sílica, e macronutrientes muito concentrados, sobretudo nitrogênio e fósforo. Quando o aquário parte, o substrato precisa “maturar”, ou seja, estabelecer e estabilizar suas camadas, de forma que as mais oxidadas e inertes fiquem por cima e as mais redutoras e quimicamente ativas fiquem por baixo. Mesmo que a amônia não fosse um problema, essa atividade desordenada do substrato já é o suficiente para causar surto de algas, uma vez que a presença massiva de nutrientes associado à luz, que ainda não estimula as plantas metabolicamente (no caso de plantas ainda no estado emerso que precisam se adaptar), abra uma ótima oportunidade para a proliferação de organismos mais rápidos e menos exigentes.
Portanto, a partida no escuro não serve apenas para adiantar o estabelecimento das colônias nitrificantes, mas também para a estabilização química do substrato. Depois de algumas semanas, toda ou boa parte da amônia que se mobiliza do substrato já está sendo nitrificada pelo biofiltro e as colônias podem crescer mais rapidamente em condições muito mais propícias as quais seriam impossíveis de estabelecer quando se pretende estimular ritmo metabólico das plantas. Quais condições são essas? Elas já foram bem detalhadas no Livro 1, mas basicamente são KH mais alto, temperatura mais alta, pH mais alto, oxigenação mais alta e outro importante fator comumente negligenciado ou até desconhecido pelos aquaristas, espaço.
O espaço se refere à disponibilidade de espaço físico nas mídias, as quais podem ser povoadas por bactérias heterotróficas antes das colônias nitrificantes. Essas bactérias crescem cerca de vinte vezes mais rápido que as nitrificantes e surgem onde há presença de carbono orgânico oriundo de processos de decomposição. Em outras palavras, elas estão em toda a parte que haja tecido orgânico morto, seja plantas mortas, ração e fezes de animais. Quando digo fezes de animais, não me refiro somente às dos peixes, mas também e principalmente de caramujos, que quase sempre estão presentes nas partidas se multiplicando muito rápido vivendo dos descartes de plantas em fase adaptação para a forma imersa. Acha que os caramujos sujam pouco? Experimente montar um aquário de 20 litros com alguns deles e veja a sujeira pesada que fazem. Eles são grandes poluidores do aquário plantado e sua proliferação depende muito das plantas. Se nas partidas no escuro ainda não há plantas, eles até podem surgir ao eclodir ovos latentes presentes no substrato, mas não terão do que se alimentar e, portanto, não poderão se multiplicar muito depressa. Isso alivia muito a carga orgânica produzida pelo aquário e reduz as chances de arrastar detritos demais para as mídias. Aproveitando o ensejo, aqui lá vão mais duas dicas: use pré-filtro para impedir que muito particulado chegue nas mídias e use também carvão ativado nesse período, pode ser numa bolsa suspensa no vidro mesmo, para ajudar a reter o carbono orgânico.
Figura 2 – Aquário com problemas na fase de partida com metabolismo.
Talvez agora seja oportuno abrir um parêntese aqui: não sei se o nome apropriado seria “partida” no escuro, porque, para ser um aquário plantado, a partida propriamente dita só acontece com luz para provocar metabolismo. Em tese, o aquário ainda não está “vivo” mesmo com as colônias já estabelecidas, portanto ainda não há ecossistema, somente um fragmento dele, da mesma forma que somente um chassi não pode representar um carro. Mas não importa, uma vez que essa manobra, vamos dizer assim, apronte um terreno para a verdadeira partida com luz, ela acaba sendo uma pré-partida. Isso é apenas uma questão teórica que pode causar confusão mais tarde com outras questões. De qualquer forma, já deixei o ilhós aqui preparado para caso precise fechar as costuras de eventuais confusões. O que é importante ter em mente para esse momento é que o aquário, durante a partida no escuro, ainda não tem metabolismo, não tem consumo, não tem ritmo e não está produzindo, por conseguinte, ainda não está vivo. Fecha parêntese.
Figura 3 – As algas verdes costumam ser problemas mais típicos de aquários mais maduros.
Então se vemos tantas vantagens em partir um aquário no escuro, por que raios não pensamos nisso antes? Ora, porque não. Quanto tempo demorou para botarem rodinhas sob as malas de viagem? Aposto que Einstein e Tesla andaram por muitos aeroportos arrastando malas pelo mundo todo sem nunca terem pensado nisso. Mas um dia alguém pensa e, como no livro O Alquimista de Paulo Coelho (eu não gosto das obras dele, mas esse livro é realmente muito bom, talvez o único que valha alguma coisa), descobre-se que está dormindo em cima do tesouro a vida toda sem perceber. Não que partir o aquário no escuro resolva todos os problemas do aquário plantado, mas ajuda muito e economiza muito tempo, dinheiro e paciência. É como tirar uma carreta do lugar já na terceira marcha. Quantos aquaristas falharam e desistiram do aquário plantado por nunca terem vencido a fase de “partida”? Quem é mais experiente sabe que tocar um aquário produzindo é muito mais fácil e demanda condutas bem mais tranquilas que um aquário em fase de partida. Esse método da partida no escuro pode tornar obsoleto todo e qualquer esforço em querer partir um aquário com metabolismo (com luz e plantas logo de início), pois não há contraindicações, não consigo pensar em nenhuma condição em que esse método não seja indicado ou seja impossibilitado com exceção do dry start.
É impossível conduzir a partida no escuro partindo o aquário no dry start se tratando de propagar plantas carpete, mas pode ser possível quando se trata apenas de musgos. Não sabemos se os musgos, uma vez já estabelecidos e maduros, podem sobreviver tanto tempo sem fotoperíodo vivendo apenas de muito pouca ou nenhuma luz indireta, isso é algo que alguém precisa tentar para sabermos, mas também é uma questão de bom senso e prioridade: partir no escuro com musgos representa mais uma preocupação para o aquarista que pode querer acelerar um processo que não pode ser acelerado. Entre facilitar a fixação de musgos e fechamento de carpetes contra amadurecimento da nitrificação, a escolha pela nitrificação é a escolha mais sábia. Contudo, ainda nesse contexto, alguém poderia tentar seguir pela lógica de prosseguir com o dry start e usar filtros amadurecidos de outros sistemas, sem passar o aquário pela partida no escuro. Isso não seria equivalente ao biofiltro ter passado pela partida no escuro? Não, simplesmente porque o biofiltro imigrado possui a população de bactérias proporcionais à produção de amônia daquele sistema que, uma vez já amadurecido, corresponderá a uma porcentagem bem baixa da produção de amônia de um aquário em partida. Será preciso aumentar as colônias, em quantidade, e somente a amônia sustenta essa população fazendo desse esforço equivalente a praticamente partir um filtro do zero. Então não se iluda, um filtro maduro vindo de um sistema estável não corresponde a um filtro em fase de partida de forma suficiente para sustentar uma partida com luz. Esse tipo de raciocínio relativizado está presente em várias dimensões no aquário plantado e é onde a maioria das pessoas falham. A maioria das pessoas raciocinam de forma binária, do tipo, “meu filtro está maduro, logo não há problemas em partir um aquário do zero” e não levam em consideração a graduação das coisas. É PRECISO ENTENDER QUE A COLONIZAÇÃO DO BIOFILTRO CORRESPONDE À OFERTA DE AMÔNIA DISPONÍVEL NO SISTEMA, da mesma forma que a quantidade de leões num território corresponde à quantidade de presas presentes nesse território. Por que é tão fácil entender as coisas se tratando de leões e zebras, mas não se tratando de colônias de bactérias e substratos energéticos? As coisas não são tão complicadas, na verdade, são muito simples.
Posto que essas dúvidas já estejam todas esclarecidas, vamos voltar ao método em questão…
“Como conduzir o método?”, “quanto tempo deveria rodar no escuro?”, essas são as perguntas que surgiriam imediatamente. Bom, a velocidade com que as colônias vão se estabelecer e crescer depende de muitos fatores físico-químicos como já vimos, mas supondo que tudo seja feito corretamente, imagino que depois de um mês já seja o bastante para acender as luzes, plantar o aquário e prover CO2. É importante salientar que essas condições precisam ser atendidas para que tudo dê certo e não é possível saber se o aquário já está pronto para acender as luzes. A água não muda de cor ou de cheiro para saber, é preciso adquirir experiência. Os testes não vão dizer nada e o que disseram não é confiável, pois a quantidade de amônia suficiente para atrapalhar todo o processo é menor que a incerteza desses testes, está abaixo da sensibilidade deles, portanto, na prática são inúteis. O mesmo para a medição de nitrato, nitrito, sílica ou fosfato; ninguém pretende que esses nutrientes cheguem a zero durante a fase de estabilização do substrato no escuro. O que se poderia ler ninguém sabe se é muito ou pouco, então abandone essa ideia. Não existe uma escala para essas coisas.
Figura 4 – Bactérias nitrificantes povoando mídias biológicas vistas em microscópio.
Também não acredite demais nos “aceleradores de biologia”. Esses produtos, se realmente funcionam, não aceleram o estabelecimento das colônias, mas sim o crescimento delas. Você pode plantar um metro quadrado de grama e esperar anos para que se cubra um quarteirão inteiro, ou pode plantar vinte metros quadrados e esperar bem menos. Contudo, o tempo que a grama leva para enraizar e produzir folhas verdes antes que possa se alastrar é o mesmo plantando um ou dez metros quadrados. As pessoas precisam entender isso. Com o biofiltro é exatamente assim, você pode esperar que as bactérias naturalmente presentes no sistema povoem todo o espaço das mídias ou pode acrescentar mais unidades dessas bactérias, mas não pode acelerar o período necessário para o estabelecimento delas. Se a grama precisa de sol, água e solo fértil para se estabelecer mais rápido (e não mais grama), o biofiltro precisa das condições físico-químicas para fazer o mesmo, caso contrário, os “aceleradores biológicos” são apenas dinheiro jogado fora. É importante que as pessoas entendam que produto nenhum, sem a sabedoria do aquarista, é capaz de acelerar nada no aquário plantado, como uma poção mágica. E espero que quem esteja lendo isso entenda de uma vez por todas que adicionar peixes no aquário plantado precocemente baseado nesses “aceleradores” consiste num grande risco e esse tipo de risco é um erro irresponsável totalmente desnecessário.
Concluindo, a partida no escuro é um ótimo método para as partidas do aquário plantado, mas só funciona quando se tem conhecimento do que deve estar inserido nesse método. Esse método começou a ser praticado recentemente, pelo menos do que tenho conhecimento, por alguns aquaristas que estudaram e entenderam vários fundamentos teóricos a ponto de simplesmente por rodas nas malas. É uma evolução na prática do aquário plantado e de forma nenhuma consiste num mito ou prática com vantagens irrelevantes. Vários aquaristas experientes estão trabalhando assim com seus sistemas e estão experimentando resultados similares.