O metabolismo do carbono das bactérias nitrificantes
O metabolismo do carbono das bactérias nitrificantes
Por Eduardo Fonseca Jr
15/03/2023
Alguns dias atrás um rapaz que já tinha feito minhas aulas me fez uma pergunta interessante que eu não soube responder de imediato: Se eu aumentar o volume de mídia biológica, aumenta o consumo do KH? Existe um limite para o consumo do KH ou ele será consumido de maneira proporcional ao volume de colônias? A resposta parecia simples; o consumo de KH não tem nada a ver com o volume de colônias, mas sim com a quantidade de amônia oxidada. Dessa forma, não adianta aumentar a quantidade de mídia biológica – se não há amônia suficiente, as colônias não vão povoar o excedente de espaço físico, portanto, não haverá consumo excedente de KH. Eu não fiquei satisfeito com essa resposta e fui estudar. Havia premissas ocultas para deduzir uma resposta satisfatória. As questões eram as seguintes:
a) A fonte de carbono das bactérias nitrificantes para construção de biomassa é o bicarbonato. É por essa razão que elas consomem KH. Pelo menos era isso o que estava postulado na literatura até eu produzir o Livro 1. Mas qual tipo de metabolismo elas empregam para assimilar o HCO3–? O nitrogênio participa dessa via metabólica? O metabolismo do carbono é o mesmo que oxida o nitrogênio ou são duas coisas diferentes?
b) Se forem dois metabolismos diferentes, então existem duas vias de utilização do carbono, uma para a oxidação do nitrogênio (o carbono agindo como catalisador talvez) e outra para a assimilação de biomassa (entrando efetivamente para a equação fisiológica)?
c) Se existem duas vias de utilização de carbono diferentes, as duas vias utilizam o carbono na forma de HCO3– ou existe uma segunda forma?
Existe um grande problema na pesquisa a respeito das bactérias nitrificantes, mais ainda em português, que é o plágio. Encontramos exatamente as mesmas frases em vários trabalhos diferentes, o que nos leva a pensar que os trabalhos são superficiais ou generalizados. A maioria dos trabalhos acabam sendo meras revisões de bibliografia, repetindo informações como papagaios de pirata sem esclarecer muita coisa citando uns aos outros. Eu tive que buscar artigos em inglês e consegui resultados melhores, mas que não deixaram de ser confusos. A principal consiste em duas premissas comuns a todos os artigos que dizem simplesmente o seguinte:
1) As bactérias nitrificantes assimilam o CO2 como fonte de carbono para a construção de biomassa (crescimento da colônia, massa de indivíduos, replicação celular);
2) A nitrificação opera melhor em pH mais alcalino entre 7,5 a 8,5, podendo ser significativamente inibida em pH abaixo de 6,6.
E então surgem questões que qualquer aquarista bem estudado e atento levantaria; como é possível um organismo assimilar CO2 numa faixa de pH tão alta onde justamente ele se torna mais escasso? Quase todo o carbono inorgânico nesse pH está na forma de bicarbonato. Se você pensou nisso, parabéns, esse é o raciocínio correto. Devemos esperar que as colônias assimilem o HCO3– e não o CO2 porque o segundo se tornaria gravemente limitante. Essa diferença pode não ser relevante para as estações de tratamento de água de um ponto de vista prático, mas tem vital importância para nós aquaristas. As bactérias assimilam o CO2 ou o HCO3– afinal? É bem compreensível que eles considerem qualquer forma de carbono inorgânico dissolvido na água como CO2, o que é uma verdade, pois o bicarbonato é apenas mais uma dentre três variações do CO2 que reage com a água. Eu poderia me contentar e deduzir que o bicarbonato é mesmo a resposta, fechar os livros e ligar o Netflix? Eu não desisto tão fácil, ainda tinha tiririca nesse jardim.
Se no fim das contas fosse o CO2 mesmo, só seria possível pelo Ciclo de Calvin. Mas como seria possível que essas bactérias operassem o Ciclo de Calvin no escuro? Elas teriam RuBisCO (a enzima que se liga ao CO2 dentro do Ciclo de Calvin)??? Como isso seria possível? Assumir essa hipótese seria o mesmo que assumir que as plantas herdaram a RuBisCO (e, portanto, a capacidade fotossintética plena e desenvolvida) de microrganismos no processo evolucionário muito antes do Siluriano. Bem, as cianobactérias foram os primeiros organismos fotossintéticos conhecidos, mas eu sempre imaginei (e li) que fosse uma “proto-RuBsiCO” e não a RuBisCO efetivamente que se ligava ao CO2. Não importa, por mais absurdo que possa parecer a questão, devemos seguir em frente e desafiar o edifício teórico. Isso implicava que meus livros e aulas poderiam estar todos errados. Se isso fosse verdade, os aquaristas poderiam zerar seus KH e viver de CO2. Eu estava com medo de descobrir.
A pergunta a se fazer era: bactérias nitrificantes operam o Ciclo de Calvin?
Essa resposta veio em duas partes surpreendentes. Primeiro, na década de 90, os geneticistas descobriram que as bactérias nitrificantes apresentavam vestígios de RuBisCO a nível genético, mas não foram capazes de sintetizar a enzima para atestar que tinham ou, o mais importante, se a usavam para metabolizar o carbono como CO2. Poderia ser só um vestígio evolucionário, um retalho de um passado obsoleto herdado das cianobactérias.
Um artigo de 2005 da Universidade do Sul da Florida fez vários experimentos com injeção de CO2 em biorreatores para saber se a nitrificação aumentava. Sim, eles descobriram que sim! Injetar CO2 aumentou significativamente a nitrificação e conseguiram correlação positiva até 1% de CO2 (cerca de 10.000 ppm) a partir do qual a nitrificação parecia não melhorar mais. Nesse artigo, entretanto, eles usaram bastante alcalinidade na forma de bicarbonato de sódio e operaram em pH acima de 8. Será que todo o CO2 injetado estava sendo convertido a bicarbonato pelo pH do experimento? A questão persistiu. O artigo não esclareceu o metabolismo do carbono das bactérias nitrificantes.
Vários artigos de 2018, em especial um da Universidade de Zurique, estavam descrevendo o metabolismo do carbono pelas bactérias nitrificantes. Eles as incluíam num novo jargão obsceno chamado “microbiologia autótrofa procarionte aeróbica”, um grande grupo de decompositores do qual as bactérias nitrificantes fazem parte. E senhoras e senhores, lhes apresento o fato surpreendente de que várias bactérias, incluindo as nitrificantes, operam o Ciclo de Calvin!
A confusão só aumentava: como é possível operar o Ciclo de Calvin no escuro, uma vez que as bactérias nitrificantes são fotofóbicas? Como sempre as perguntas corretas levam às respostas corretas. É agora que lhes trago novas informações.
Primeiro, a RuBisCO das bactérias não é dependente da luz como nas plantas. Elas operam de forma semelhante às plantas CAM que fazem a síntese do carbono durante a noite. Foi fácil de entender. A fotossíntese opera sob a luz por causa da fase clara da fotossíntese, a fotofosforilação, que usa os fótons de luz para gerar ATP e poder redutor (detalhes no Livro 2). As bactérias não precisam da luz para gerar ATP porque o fazem pela fosforilação oxidativa, ou seja, pela respiração aeróbica, na presença do oxigênio. O Ciclo de Calvin estava livre para operar no escuro. Segundo, por operarem o Ciclo de Calvin, a RuBisCO realmente se liga ao CO2, contudo, esse CO2 não é capturado diretamente da água. Como já sabemos (se não sabe, deveria saber; é obrigação de todo aquarista de plantado com todo o conhecimento compilado em português disponível atualmente), a RuBisCO tem o grande inconveniente da sua função oxigenase, o que faria as bactérias obrigatoriamente dispor, também, do ciclo fotorrespiratório C2, o que não acontece. Elas precisavam isolar o CO2 antes de entregar ao Ciclo de Calvin. Esse CO2 vem de uma reação prévia chamada anidrase carbônica que ocorre já dentro da bactéria num compartimento celular chamado carboxissomo. Ela assimila, de fato, o HCO3–, mas logo em seguida é convertido a CO2 nos carboxissomos para então ser entregue à RuBisCO no Ciclo de Calvin. O carboxissomo serve justamente para prevenir a entrada do oxigênio no Ciclo de Calvin, de forma mais ou menos parecida como acontece com as plantas C4. As perguntas estavam sendo respondidas e, para o meu alívio, meus livros não estão errados, só incompletos ou desatualizados. Isso é normal para a produção técnica.
Na época que escrevi o Livro 1 e o 2 eu não quis descrever a anidrase carbônica por achar irrelevante (entre as plantas, é um tipo de metabolismo do carbono restrito às plantas verdadeiramente aquáticas, como a Elodea, que não temos o hábito de usar no aquário plantado) mas acho que agora podemos entrar nos seus detalhes. A anidrase carbônica é, na verdade, uma reação catalisadora de conversão do HCO3– para o CO2. De fato, o HCO3– pode ser convertido a CO2 num processo extremamente lento mediado somente pela água e pelo pH do meio. O problema é que um organismo que precise do CO2 tem uma demanda muito maior do que essa taxa de conversão natural. A anidrase carbônica faz exatamente a mesma conversão, mas muito mais rapidamente por uma enzima mediada pelo zinco.
Ora, então no fim não muda nada. No fim das contas, as bactérias assimilam mesmo o bicarbonato e não diretamente o CO2, os aquários vão mesmo consumir KH para manter o biofiltro oxidando amônia e não há nenhuma conclusão prática que devamos tirar dessas informações? Vamos com calma. Ainda não respondemos todas as perguntas. Aquelas do começo do artigo ainda continuam sem resposta. Vamos nos aprofundar mais.
As bactérias nitrificantes oxidam a amônia e o nitrito, ou seja, extraem elétrons deles, para reduzir, ou seja, entregar esses elétrons ao Ciclo de Calvin, e transformar o carbono inorgânico em carbono orgânico e assim construir biomassa. Os elétrons são como grampos que unem átomos e moléculas; oxidar significa desmontar esses grampos (fragmentar a molécula), reduzir significa acrescentar grampos (construir molécula). Acontece que uma parte desse nitrogênio oxidado também é assimilado como fonte de nitrogênio para construção de aminoácidos e, posteriormente, para construção de proteínas. Bactérias também precisam se nutrir, como plantas, como animais. Ninguém se lembra delas, mas elas também têm sua cota de nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio, magnésio, enxofre e micronutrientes para suprir o crescimento e multiplicação celular. Não sabemos qual é essa cota em comparação ao consumo das plantas, o que certamente é uma fração muito pequena praticamente irrelevante, mas ainda assim é vital. O que podemos deduzir dessa premissa básica? Que nem todo nitrogênio que entra na nitrificação na forma de amônia acaba saindo como nitrato no fim do corredor; uma parte fica retida na fisiologia das bactérias. Isso é maravilhoso, porque o biofiltro realmente detona grande parte do nitrogênio orgânico produzido pelo aquário. Quanto mais bicarbonato, mais nitrogênio podem assimilar. Veja que são duas rotas diferentes para o nitrogênio; uma parte é oxidada e vira nitrato, cujos elétrons arrancados são usados para a redução do carbono, e outra parte é reduzida em aminoácidos. É essa parte que não vira nitrato no fim do corredor. Ouvi alguém perguntar aí na terceira fileira, “mas as plantas não aproveitariam o nitrato?”. Sim, mas o nitrato que escapa do processo de nitrificação é um nitrato colateral. Vamos chamar esse nitrato de nitrato intrínseco porque ele é gerado dentro do sistema e é inerente ao ecossistema do aquário plantado, não podemos nos livrar dele completamente. Quando falamos do ajuste da razão N:P, por exemplo, tentamos nos aproximar de uma boa condição (desconhecida por números, embora alcançável empiricamente por seus efeitos) usando nitrato extrínseco, aquele que vem dos fertilizantes. Se seu aquário produz muito nitrato intrínseco, fica muito difícil nos aproximarmos dessa razão empiricamente porque o nitrato total (nitrato extrínseco + nitrato intrínseco) seria variável pelo simples fato da nitrificação não nos entregar um resultado constante e estável. É por essa razão que fazemos trocas parciais de água; não apenas para ajudar os filtros a se livrarem do excedente de amônia que eles não conseguem processar, mas também para nos livrarmos do nitrato intrínseco, aquele que foi processado, mas saiu do outro lado. Entende como faz sentido? Entende porque é mais difícil manter um aquário plantado com muitos peixes, plantas trocando folhas e troncos não estabilizados? O problema não é só a amônia, mas o pool de nitrato intrínseco que se acumula e se soma ao nitrato que ainda colocamos pelos fertilizantes. A lógica seria fertilizar com menos N, mas com quanto menos? Quem vai definir essa quantidade? Seu teste? Boa sorte, meu amigo. Existe um cemitério enorme de aquaristas que pensam assim e nós, na escola Aquabase, lutamos incessantemente contra a cultura dos testes de nitrato, fosfato, ferro, amônia etc. Eis aqui uma breve explicação formal e prática do porquê. E existe fosfato intrínseco, ferro intrínseco, enxofre intrínseco? Claro! Acha que toda decomposição só resulta em amônia? Amônia é só uma fração resultante da decomposição das aminas (NH2) das proteínas. E todo o enxofre que une as cadeias de aminoácidos? Eles estão agora mesmo sendo excretados como enzimas simples de cisteína e metionina por todo o seu aquário. Poderíamos chamá-las de enxofre orgânico e há indícios acadêmicos de que essas e outras enzimas e aminoácidos podem estimular o crescimento de algas com capacidades heterotróficas como as algas peteca. É por isso que vemos alga peteca em aquários muito sujos com intensa decomposição? Não sei, talvez. Já vi aquários muito limpos com pequenos focos de algas peteca, mas acho que nunca vi um aquário muito sujo sem elas. Juntemos as peças.
Mas vamos voltar ao metabolismo das bactérias nitrificantes.
Ora, se elas afinal de contas assimilam o bicarbonato, então porque são beneficiadas com a injeção de CO2?
Boa pergunta. Elas não poderiam simplesmente viver da injeção de CO2 como as plantas fazem? Daríamos menos trabalho para elas sem precisar converter tanto HCO3– a CO2 e nossos aquários poderiam ter o KH zerado… Não é tão simples por três razões e a terceira vou deixar para final. Uma delas nós já sabemos do Livro 1; um dos subprodutos da nitrificação é produção de íons H+ de forma que, ao se acumularem e baixar demais o pH no biofilme, se une ao nitrogênio formando ácidos nitrosos e nítricos (depende da fase, se for da amônia para nitrito ou do nitrito para nitrato respectivamente) que inibem a nitrificação. É como se as bactérias parassem de trabalhar por causa da própria sujeira. É nessa hora que o HCO3– opera como um coadjuvante regulador externo ao organismo das bactérias anulando esses ácidos funcionando como tampão. Veja que essa participação do bicarbonato não opera dentro da fisiologia das bactérias, ele opera como regulador do meio, logo, é preciso que o ambiente da nitrificação esteja tamponado para que não se acidifique demais. O bicarbonato, portanto, possui dupla função; além de fonte de carbono para a síntese de biomassa, ele também opera como tamponador externo, sendo, portanto, imprescindível para a nitrificação.
Segundo e o mais interessante, é que essas pesquisas que estimularam a nitrificação por meio da injeção de CO2 descobriram que existe alguma razão ótima entre HCO3–:CO2 para elas operarem bem. Não se sabe bem porque elas precisam dessa razão, mas eu particularmente suspeito que seja uma resposta bem simples: talvez pelo gradiente de pH extra e intracelular. Essa razão não parece ser uma razão específica, parece ser abrangente, e se alcança essa razão justamente na faixa de pH entre 7,5 e 8,5. Aha! Fechamos as pontas. O próprio estudo percebeu que o pH 6,6 ou abaixo em si não prejudica a nitrificação, mas sim por causa da baixa disponibilidade natural de HCO3–, o que diminuiria demais a razão HCO3–:CO2. Sabe o que isso significa? Nós podemos operar nossos aquários em pH 6,6 ou até 6,4 sem prejuízo para o biofiltro desde que suplementemos o KH. Isso vai contra a literatura mais antiga (aquela que usei para escrever o Livro 1), mas não contradiz a nova literatura que abrange as duas coisas como verdades parciais constituindo uma verdade maior. É como uma pessoa que é proibida de tomar leite por seu médico. Mais tarde, se descobre que o problema não era o leite em si, mas a lactose. A ordem evolui para a permissão de tomar leite, desde que não tenha lactose. E a nova premissa também pode deduzir que não só o leite como qualquer outro derivado do leite que contenha lactose pode trazer problemas como o queijo e a manteiga que não estavam incluídos na restrição anterior. A restrição ao leite é verdade? Bem, parcialmente verdade; o enunciado anterior está dentro do novo, mas o novo não está dentro do anterior. É a mesma coisa conosco. Você pode ter um pH mais baixo (contradizendo a antiga literatura), desde que tenha oferta de bicarbonatos suficiente para atender a nitrificação (sabemos que é acima de 4, mas gosto de recomendar 8 por motivos práticos com o CO2) e de nada adianta ter pH mais alto com a aeração noturna (obedecendo a antiga literatura) com KH abaixo de 4. A chave é o KH, não tanto o pH.
Mas então a presença de CO2 seria facultativa para a nitrificação? As bactérias podem obter todo o carbono dependendo somente do bicarbonato? Não. É agora que entra o terceiro ponto… tomem fôlego para ler um pouco mais.
Nem todas as bactérias nitrificantes aeróbicas pertencem ao mesmo grupo das Nitrossomonas (que oxidam a amônia a nitrito) e das Nitrobacter (que oxidam o nitrito a nitrato). Existem muitas outras bactérias similares com metabolismos distintos que podem coexistir no biofilme ou até concorrer entre si por espaço e substrato energético. A verdade é que cada uma dessas bactérias sobrevive em condições bastante restritas, de forma que o extremo de uma dada condição começa a favorecer um determinado tipo de bactéria em detrimento das outras. Na maior parte das vezes, são os níveis de oxigênio que ditam quais tipos devem se estabelecer primeiro e prevalecer no biofilme, mas outros fatores como concentração de máxima de amônia e temperatura também impõem restrições. Alguém soprou a teoria dos microhabitats aí? Pois, é, vou voltar nesse assunto mais tarde. Diversas pesquisas mais modernas têm descoberto que a Nitrospira, e não a Nitrobacter (que era quem sempre acreditamos que fosse) é o gênero de bactérias predominante no biofiltro e não somente isso, mas também descobriram recentemente que a Nitrospira pode, sozinha, nitrificar a amônia até nitrato! A Nitrospira, entretanto, opera em ambientes quase anóxicos, com concentrações de oxigênio abaixo de 1 mg/L, sendo consideradas, portanto, organismos microaeróbicos. Nesse contexto fisiológico, seu rendimento é muito inferior à dupla Nitrossomonas e Nitrobacter e, como era de se esperar, seu metabolismo do carbono não opera o Ciclo de Calvin, uma vez que ambientes com tão pouco oxigênio são naturalmente bastante ácidos e quase não há HCO3– para ser assimilado como fonte de carbono. Essas bactérias metabolizam o carbono por uma outra via conhecida como o Ciclo Redutor do Ácido Cítrico, ou Ciclo de Arnon-Buchanan, o qual não quero entrar em maiores detalhes, bastando dizer que o CO2 é a fonte de carbono diretamente metabolizada e não o bicarbonato. Ora, considerando as condições microaeróbicas dos sedimentos e dos biofilmes das lagoas de estações de tratamento, a Nitrospira deve mesmo ser quase uma regra, mas isso se aplica mesmo aos nossos aquários? Não estou muito seguro de dizer que não, pelo menos não totalmente. Acho prudente considerar que a Nitrospira deve coexistir com a dupla Nitrossomonas e Nitrobacter em compartimentos mais anóxicos dos filtros, quem sabe até no miolo das mídias, onde o oxigênio quase não alcança. Isso está amplamente descrito na literatura técnica como verdade empírica.
Então o que devemos concluir? Devemos considerar que a injeção de CO2 otimiza a nitrificação no aquário plantado por aproveitar os “pontos cegos” microaeróbicos dos nossos filtros por alimentar nossas prováveis Nitrospira. Isso não é incrível? Considerar que o CO2 TAMBÉM exerce benefícios para a nitrificação é uma pequena revolução. O CO2 ganha cada vez mais importância para o aquário plantado e explica muitas coisas a partir daqui.
Vamos sintetizar todas essas informações em dois enunciados:
1) Tanto o metabolismo do carbono quanto o processo de nitrificação das bactérias nitrificantes aeróbicas são dependentes do HCO3–;
2) O CO2 aumenta a eficiência do biofiltro por favorecer eventuais bactérias nitrificantes microaeróbicas.
Esses enunciados fazem as pazes dos aquaristas que acreditavam que o biofiltro consumiam CO2 com aqueles outros que acreditavam, como eu, que o biofiltro consumia apenas HCO3–. Os dois estavam parcialmente corretos, mas os do segundo grupo estavam um pouco mais corretos considerando as condições aeróbicas do sistema e não microaeróbicas. Com isso, temos a seguinte equação do metabolismo total de carbono pela nitrificação, sendo que a molécula C5H7O2N consiste na constituição fundamental (90% do peso seco) de uma célula de bactéria.
Agora quero voltar na questão dos microhabitats aplicada ao biofiltro. Como vimos, as primeiras condições a serem impostas ao ambiente vão determinar que tipo de bactéria vai começar a povoar o sistema. E aqui há três informações que podem nos ser úteis, principalmente na partida dos aquários. A primeira é que, como já sabemos, as bactérias nitrificantes, sejam elas qual forem, vão competir com as bactérias heterotróficas por espaço de colonização, por oxigênio e também por nitrogênio. Salientando que existem bactérias heterotróficas de todo tipo e maneira que apresentam uma capacidade de proliferação várias vezes mais rápida e consistente que as nitrificantes, precisamos estabelecer as colônias dessas últimas o mais rápido possível lhes oferecendo todas as condições favoráveis ao mesmo tempo que precisamos mitigar a produção e dispersão de carbono orgânico proveniente da decomposição normal do início das montagens. A literatura diz que existe uma razão máxima admissível para carbono orgânico x oxigênio dissolvido (CO:OD) além da qual a nitrificação se torna inibida pela competição pelo oxigênio. Podemos esperar essa condição em duas circunstâncias: aquários e ou filtros sujos demais e aquários muito lênticos a ponto de se tornarem microaeróbicos, especialmente durante a noite. No primeiro caso, teremos o filtro dominado por bactérias heterotróficas produzindo muita amônia sem quase nada que possa nitrificá-la; esse é o pior de todos os mundos. Além do mais, mesmo que houvesse espaço para colonização de bactérias nitrificantes, elas dificilmente conseguiriam, uma vez que são inibidas por toxicidade pela própria amônia acima de 1 mg/L (a Nitrospira é ainda mais sensível ao excesso de amônia que a dupla Nitrossomona e Nitrobacter). Filtragem biológica em aquários tão sujos assim é simplesmente inútil.
No segundo caso, poderíamos ter o filtro colonizado apenas por Nitrospira. Talvez essa seja a razão pela qual alguns aquários simplesmente não se acertam aumentando o KH e continuam sofrendo com algas marrons, por exemplo, de forma crônica. Isso nos chama a atenção inclusive para o interior dos nossos filtros nos fazendo pensar se a melhor ideia é mesmo ligá-los em série. Dependendo do tamanho do filtro, poderíamos suspeitar que um eventual segundo filtro em série não receba a quantidade necessária de oxigênio e esteja sendo subutilizado pela Nitrospira. Mídias muito compactadas e muito material para a filtragem mecânica como o perlon e as espumas também podem restringir e prejudicar a devida distribuição de oxigênio para o filtro. São muitas coisas para pensar e tentar extrair lições práticas, não são exatamente recomendações. Eu, particularmente, só uso mídias nos meus filtros, sem espumas e sem perlon.
Outra condição bastante relevante é a temperatura. A Nitrospira se beneficia mais em temperatura acima de 27oC e a Nitrobacter abaixo de 25oC. Talvez isso tenha a ver com a solubilidade do oxigênio, de forma que temperaturas mais altas favorecem concentrações mais baixas deste. Se isso for verdade, basta aerarmos melhor nossos aquários, mesmo com 27oC, para compensarmos as condições a favor da Nitrobacter. De qualquer maneira, já era sabido que aquários mais frios são muito mais estáveis e constantes por diversas razões físicas, químicas e biológicas, principalmente pelo conforto das plantas.
Toda essa história acaba dando muita razão também para a partida no escuro, o dark start, que tem sido cada vez mais praticado e vem dando certo. Damos menos chance para a Nitrospira ocupar as mídias e favorecemos a dupla Nitrossomonas e Nitrobacter com o máximo de eficiência antes de exigir metabolismo do sistema. Portanto, forneça muito oxigênio na partida e muito KH (e, se possível, mantenha o aquário por volta de 25oC). Temos informação suficiente para defender isso como um bulldog. A partida no escuro e a aeração noturna é uma das coisas mais modernas e eficientes a favor da nitrificação que podemos oferecer para nossos aquários. Tenho bastante orgulho por ter sido o pioneiro nesse conceito da aeração noturna e defender altos níveis de KH e receber constantes notícias de que isso tem melhorado a estabilidade dos aquários por aí. Por quê ninguém pensou nisso antes?
E a pergunta inicial do nosso amigo? Mais volume de mídia aumenta o consumo de KH? Sim, se a quantidade de amônia continuar sendo superior à capacidade atual da colônia de processá-la. Se em algum momento as colônias conseguirem processar 100% da amônia, elas param de crescer e o consumo de KH se estabiliza. Consumo de amônia e de KH são fatores dependentes. Mas seria possível, na prática, alcançar esse ponto de ter espaço de mídia sobrando além do que o aquário produz de amônia? Acredito que seja muito difícil, mas possível. Mas mesmo que esse ponto seja alcançado, o aquário não estaria livre das TPAs por produzir bastante nitrato intrínseco (entre outros nutrientes colaterais). Em outras palavras, tenha o máximo de capacidade filtrante que puder, mas jamais poupe o aquário das TPAs.
Vejam que a resposta ao amigo, no fim do estudo, permaneceu a mesma, mas a busca por uma validação trouxe, além de mais segurança, enunciados novos. E o mais intrigante é saber que a injeção de CO2 no aquário plantado não beneficia somente as plantas, mas também ao biofiltro! Quando postulamos, portanto, que o aumento das concentrações de CO2 no aquário tende a inibir a proliferação das algas pelo deslocamento do equilíbrio fisiológico em favor das plantas (como ensino com muita ênfase na aula 9), estamos mais uma vez contando só metade da verdade; a nitrificação também está aliada a esse fato. Sob certo prisma, as algas competem com o biofiltro pela disponibilidade de amônia, não somente com as plantas por nutrientes. E quando afirmamos que o aumento do KH também tende a inibir as algas verdes, também estamos tendo razão afinal de contas, não somente pela elevação do potencial redox (por ter um pH ligeiramente mais alto) mas também por alimentar melhor a nitrificação aeróbica, mais eficiente e mais voraz.
Esse estudo me deixou bastante animado e revigorado. Ele nos mostra o quanto existe de terreno oculto no reino dos microrganismos que, se não forem tão bem atendidos quanto as plantas, põe todo o aquário plantado a perder. Não basta ter um bom filtro, não basta ter muitos filtros e as melhores mídias, não basta usar os aceleradores biológicos. Quanto mais estudamos e nos aprofundamos nas minucias que nos trazem progressos práticos, mais nos vemos distantes de alcançar um aquarismo automatizado. Talvez o aquário plantado seja a única, ou pelo menos a última, coisa que uma tecnologia de automação ou de inteligência artificial seja capaz de compreender e dominar pelas suas infinitas variáveis ocultas. Imagina tudo o que não sabemos sobre a microbiologia da rizosfera que poderia nos ajudar! Isso foi a primeira coisa que me passou pela cabeça. Experimente estudar o metabolismo do carbono das micobactérias e me conte depois. Por hora eu vou voltar ao meu trabalho.
Quero agradecer imensamente meus alunos e amigos que mantêm o diálogo vivo sobre questões relevantes a respeito do nosso hobby. Vez ou outra surgem questões interessantíssimas como essa com desdobramentos teóricos e práticos muito úteis. As aulas, os livros, os posts do Instagram e os artigos estão dando certo. As pessoas estão evoluindo e alguns alunos evoluíram tanto em tão pouco tempo já apresentando aquários tão saudáveis com questões tão bem elaboradas que o conteúdo dos livros já se tornou básico para eles e preciso constantemente trabalhar para trazer novas informações e atender essas dúvidas importantes. Não levanto cedo certo dia e decido produzir um artigo enchendo linguiça para ver se vendo livros para lucrar 6 reais por livro ou promover minhas aulas. Eu tenho muito mais o que fazer. Meu trabalho me remunera muito bem e eu preciso me desviar de afazeres altamente lucrativos para escrever um artigo. Se novas demandas não surgem, eu não produzo nada. Simples assim. Não sou um influencer, não tenho carisma nem educação para isso. Quem me conhece de perto sabe que o trato pessoal comigo é bem tosco e as vezes grosseiro. É como fui criado e é como resolvo as coisas na minha vida, no soco e com respostas diretas. Eu seria um péssimo youtuber. Conversar comigo é como conversar com o Clint Eastwood no filme Gran Torino. Não esperem que livros virem vídeos. Portanto, leiam os livros e quando não conseguirem achar o caminho por si próprios, procurem quem está a sua frente e se cerquem de pessoas melhores que vocês. Alguns alunos já foram bem longe e esses por si já são missão cumprida. Tem sido o suficiente para o hobby sobreviver com qualidade por muito tempo.
Aos que estão chegando agora e estão se deparando com informações avançadas, recomendo que leiam os livros e se possível, assistam às aulas. Ficou impossível abrir parênteses a cada termo mais técnico explicando coisas secundárias. Chegamos num ponto que é preciso ter alguma carga de conhecimento prévio para acompanhar os artigos. Eles vão bem mais fundo que os livros, são incisões, e essas incisões às vezes são muito longas e complexas; são para quem tem dúvidas mais avançadas. Os livros vão acabar se tornando conteúdo meramente introdutório em algum momento, sendo que os artigos é que vão trazer mais densidade de informação. As coisas evoluíram muito desde 2016 que comecei a dar aulas e desde 2018 que publiquei o primeiro livro. Evoluíram tanto que esse artigo deveria estar no Livro 1, mas infelizmente não havia muita gente falando sobre isso ou eu simplesmente não fui longe demais nas pesquisas. Nós pesquisamos o que precisamos saber e naquela época a tosca explicação do ciclo biológico do nitrogênio era o suficiente para nós. Pelo menos naquela época eu já tinha ido além e introduzi a noção de que a nitrificação consumia KH, recomendei a aeração noturna, e que as bactérias heterotróficas competiam por espaço nas mídias, de forma que os filtros não deveriam fazer a filtragem mecânica e abolimos os skimmers acoplados aos captadores dos filtros. Depois disso, muitos aquários mudaram da água para o vinho. Foi uma pequena revolução. O que está sendo produzido agora é o que emana da necessidade de vocês pela evolução da experiência no hobby.
Obrigado por me manterem estudando e produzindo. Dá muito trabalho e preciso constantemente desafiar conteúdos anteriores e experimentar pontos de vista diferentes. Como um antigo professor de Filosofia da Ciência (essa matéria se chama Epistemologia) da universidade me ensinou certa vez, precisamos nos exercitar a olhar nossa postura com os olhos dos outros, principalmente dos rivais, para nos livrarmos dos nossos pontos fracos e termos a oportunidade de atacá-los nos seus pontos fortes. Não é uma guerra de egos, é uma guerra de refutabilidades, no qual somente as teorias que conseguem sobreviver ao maior número de teses opositoras persiste por um tipo de seleção análoga ao modelo de Darwin. Como ele dizia, se você amarrar um martelo na mão de um idiota, em pouco tempo ele vai achar que tudo à sua frente são pregos; não podemos ter essa visão obtusa das coisas. Esse estudo provou que tudo o que sabemos é uma mera convenção teórica provisória cheia de falhas, como disse certa vez o mestre Henri Poincaré e, mais tarde, o mestre Karl Popper (Popper é para mim o que Takashi Amano é para os aquapaisagistas). A produção científica não é um conjunto de verdades definitivas, mesmo quando apoiadas na experiência. Evoluímos na direção da verdade numa aproximação progressiva infinita aceitando humildemente o modelo míope que temos, mas nos mantendo prontos para descobrir algo maior e melhor para nós mesmos e para os outros abrindo mão, sempre que preciso, do martelo para não vermos tudo sempre como pregos. Espero que eu esteja fazendo direito.
REFERÊNCIAS
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