Estabilidade vs equilíbrio

Por Eduardo Fonseca Jr 12/12/2020

 

Sempre começo minhas aulas chamando a atenção das pessoas para o fato dos fenômenos naturais serem dinâmicos. Venho percebendo que pouca gente consegue entender de fato o que isso significa. A prova é quando perguntam de números, de parâmetros, a receita do aquário plantado.

Todo aquarista com um pouco mais de experiência sabe que não existem parâmetros a rígidos para serem respeitados. Na verdade, eu vou parar de usar essa palavra “parâmetro” agora mesmo, ela não faz sentido. Parâmetro remete a alguma coisa estática, como o nível de óleo do carro, de água no radiador, níveis de colesterol, taxa de juros do cartão de crédito etc. O aquário plantado não é assim, ele precisa encontrar seu próprio equilíbrio para prosperar e nos levar onde queremos. Essa é a palavra-chave, o cerne da coisa, o equilíbrio.

Equilíbrio é uma condição em que duas ou mais condições coexistentes basicamente não se anulam, elas se complementam. Uma bicicleta não consegue sair do lugar se um dos pedais quiser ficar sempre por cima do outro. O equilíbrio, portanto, consiste na alternância de estados, uma coisa cede à outra para depois se alternarem de forma a perpetuar um movimento.

É mais fácil entender isso quando observamos a natureza como uma consequência de eventos, como uma roda, ela realiza ciclos. Existe um fluxo de energia renovável que depende da alternância dos ciclos para alimentar os sistemas. Ciclo de nutrientes, de gases, de seleção de espécies, de condições atmosféricas, de estações, ciclos reprodutivos etc. No aquário é a mesma coisa, temos determinadas condições durante o fotoperíodo e outra durante o escuro e é imprescindível que seja assim, para que ocorram alguns ciclos e torne o sistema um pouco menos dependente, auto sustentável.

Quando os iniciantes entram para o aquarismo é natural que procurem referências que lhes apontem algum caminho, seja o certo ou o errado, e começa a perseguição dos números. Nós fomos criados para medir o caos por números, isso é inerente da nossa comunicação, mas nunca devemos nos esquecer que eles retratam condições que se relacionam com outras e todo o conjunto é dinâmico. É por essa razão que abro minhas aulas convidando as pessoas a abandonar a “diagnose tabelada” dos números e começar a entender a FENOMENOLOGIA do aquário plantado. As coisas começam a fazer sentido, cada aquário se torna um aquário diferente, um indivíduo, um organismo vivo dotado de particularidades que precisam ser levadas em consideração. Eles não se encaixam mais no “DSM4 aquarista”. Quem nunca foi atendido por um mediqueta de DSM4? Já quase morri por isso; meus sintomas foram vistos como sinusite por um médico que tirou o DSM4 do bolso junto com o Minutos de Sabedoria e três dias depois entrei numa UTI por uma pneumonia muito grave. Quem me salvou foi um outro médico que analisou os fenômenos ao invés de sintomas e números.

Não digo que números e tabelas são inúteis, eles são REFERÊNCIAS, FERRAMENTAS que amparam decisões humanas, mas não arbitram diretamente as decisões. O erro é tentar suprir uma incompetência ou falta de compreensão dos fenômenos com receitas rígidas e tentar fazer coisas mutáveis caber em caixas de tamanho único. É um caso clássico de Leito de Procusto e a humanidade precisa superá-la para evoluir, sobretudo quem tem aquário plantado em casa. Sei que a fenomenologia não é intelectualmente agradável porque a mente humana não gosta de múltiplas hipóteses e múltiplas decisões à disposição porque isso traz responsabilidade. É difícil tolerar a subjetividade e o aquário plantado é justamente tudo sobre subjetividade. Quem não gosta, será derrotado em algum momento.

É como se diz no processo de formação do raciocínio científico; não queira saber todas as respostas; às vezes é o suficiente compreender melhor as perguntas. Um exemplo? Certa vez me pediram uma solução urgente para um pH alto demais, cerca de 7,4. Por alguma razão essa pessoa acreditava que o pH deveria estar em 6,8 ou 6,6. De fato 7,4 é um problema? Depende, em que momento? O pH chegava nesse valor no escuro, com CO2 desligado e aeração noturna. O que fazer? Nada, o sistema está como deveria estar no escuro. Durante o fotoperíodo o pH chegava a 6,8. Não existe problema, logo, não existe resposta. Antes de assumir um problema, entenda por que aquilo deveria ser um problema. Se não souber, procure saber, é uma excelente forma de compreender as perguntas.

Uma outra pessoa me procurou por KH muito alto, em torno de 10. 10 é um problema? Depende; se o KH estiver alto como resultado de baixa concentração de CO2 sim, é um grande problema, o pior de todos. Perguntei quanto estava o CO2 e a medição, durante o fotoperíodo, estava em 40 ppm. Por que se preocupar? Uma vez que o CO está bem, um KH alto assim é muito benéfico, pois o biofiltro funciona melhor.

Então é esse tipo de pensamento que atrapalha as pessoas no aquarismo plantado, quando se distraem com o barulho do protetor do carter quando deveriam trocar o óleo vencido. O aquarismo não é tão complicado, não deveria ser, mas também não é fácil, ele precisa se tornar fácil e isso se conquista com experiência, a boa experiência, aquela baseada na observação dos fenômenos, na análise dos eventos de causa e efeito, sob o prisma da subjetividade mesmo. É um exercício que todo aquarista deveria fazer; tentar entender a linguagem do seu aquário e em que nível ele se comunica. Por isso esse hobby é tão maravilhoso, ele não depende de botões para funcionar, mas depende de atitudes e decisões e é preciso saber quando não fazer nada. Com o tempo deve-se entender que não fazer nada também é uma atitude.

Agora vamos falar sobre a mesma coisa, mas de forma mais avançada, sobre alguns aspectos do aquário plantado muito pouco discutidos. A relação entre constância, estabilidade e controle. Bem, é meio que aceito universalmente que o aquário plantado precisa de algumas condições ótimas para se desenvolver bem como luz, CO2 e nutrientes, além de uma filtragem biológica eficiente. Isso é irrefutável. Mas também dizem que tudo isso deve ser suprido de forma constante a fim de se assegurar a estabilidade. Aí é que mora alguns perigos e essa questão é bastante delicada.

O fato é que tais condições ótimas fornecidas de forma constante realmente assegura a estabilidade, mas também é fato que enfraquece os sistemas. A natureza tem muitas imperfeições e elas precisam ser testadas constantemente para que o que é bom seja selecionado em detrimento do que é ruim. Você pode trocar a palavra bom e ruim por forte e fraco se desejar, a ideia é essa mesmo porque no fim a finalidade é destruir ou fortalecer aquilo que se torna obsoleto ao sistema. Isso se traduz no que é chamado de hormese.

Nós já conhecemos a hormese sob a moral do ditado que diz “a diferença entre o remédio e veneno está na dose” ou “o que não mata engorda”. Bem, vamos partir daí. O princípio da hormese preconiza que danos pequenos e controlados, quando administrados com certa frequência, produzem o efeito contrário da soma de todos os danos caso fossem administrados numa única dose. Pense sobre o efeito da gravidade para nós e a falta que ela faz para os astronautas em órbita. Eles precisam simular os impactos e a pressão do próprio peso sobre as articulações e músculos quando estão no espaço para não atrofiarem. Da primeira vez não sabiam disso e os primeiros astronautas que retornaram à Terra depois de um longo período sem gravidade tiveram de ser carregados pois estavam incapazes de caminhar. O mesmo serve para o crescimento das crianças; elas precisam se submeter a impactos sobre suas articulações para desenvolverem ossos fortes. Especialistas sugerem que o impacto causado por esportes estimulam o crescimento e há relatos de atletas de alto rendimento que apresentaram crescimento após os 25 anos de idade provavelmente devido aos impactos da modalidade. Os ossos endurecem e se alongam. Os jejuns intermitentes também apresentam seus benefícios pois constantemente forçam o corpo a destruir as células mais fracas e melhoram a absorção dos nutrientes. A natureza é dotada de inúmeros casos assim e podemos observá-los em todos os lugares.

Agora vamos nos voltar ao aquário plantado.

Uma vez que alcancemos o consumo de luxo das plantas e não tenham o desenvolvimento limitado, o aquário dificilmente perde a estabilidade. Contudo, as plantas podem enfraquecer por falta de condições adversas. Um exemplo são as plantas demasiadamente expostas ao CO2 cujos vacúolos celulares, usados para estocar nutrientes, se tornam abarrotados de amido (o produto do consumo de luxo do CO2). Nessas condições as plantas se tornam muito sujeitas a sofrerem carências nutricionais, especialmente de macronutrientes que não conseguem ser estocados apropriadamente por falta de espaço. O aquário fica muito dependente da fertilização líquida e sente muito rápido o declínio da fertilidade do substrato. A estabilidade decorrente da constância acaba gerando uma estabilidade frágil que facilmente se inclina ao desequilíbrio e instabilidade.

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Figura 1 – Esquema celular vegetal. É nos vacúolos que as plantas estocam nutrientes quando o consumo de luxo é atendido plenamente.

 

De forma geral, o consumo de luxo, ao mesmo tempo que fortalece as plantas e regula o habitat a favor das plantas ao invés das algas, pode enfraquecê-las a longo prazo por decair a taxa metabólica do sistema como um todo porque a partir de um certo ponto as plantas estão tão saturadas em seus vacúolos que praticamente já não há consumo proporcional à massa vegetal presente. Os problemas começam a se tornar potenciais e danos pequenos podem começar a se somar. Não é uma certeza, é uma possibilidade. Em alguns casos, uma probabilidade.

Por essa razão eu defendo o princípio da hormese, de não fertilizar tão rigidamente o aquário, como um relógio, com doses sempre iguais, mas ao contrário, oscilar a frequência, variar as doses e eventualmente deixar passar um período, mesmo que por alguns poucos dias, sem fertilização alguma, para que acessem seus estoques e façam seus hormônios e enzimas trabalharem. Isso tornará o sistema mais produtivo a longo prazo e metabolicamente mais ativo. Além disso, pode treinar o sistema a ter respostas rápidas a condições adversas por coleção desses pequenos danos. Isso precisa ser feito com moderação, com alguma aleatoriedade. De fato, a aleatoriedade é a alma da natureza. A percepção da falta de alguns nutrientes estimula até mesmo a extensão dos sistemas radiculares como tentativa de alcançar ancoragens mais férteis. Isso, por sua vez, propicia mais sítios de desenvolvimento de rizo bactérias que favorecerão a nutrição das plantas em condições normais.

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Figura 2 – Rio Sucuri em Bonito MS. O esplendor do rio é alcançado por seguidas variações sazonais que resultam em períodos específicos de boa forma.

 

Obviamente, na natureza esse processo é muito mais brutal, pois os organismos são realmente testados, o que leva muitos indivíduos, aqueles menos aptos a suportarem as adversidades, a sucumbirem. Na verdade, é justamente nisso que consiste o processo de seleção natural. Algumas vezes os danos se descarregam como um martelo, mas não é a esse ponto que levaremos nossos aquários. Nós só vamos oferecer um pouco de aleatoriedade e fracionar adversidades para estimular respostas metabólicas. No fim, visamos o estímulo do consumo para manter o aquário ávido ao invés de preguiçoso. Algumas plantas sentem muito rápido qualquer mudança importante nas condições ambientais e “melam” as folhas não como uma resposta de enfraquecimento como muitos podem supor, mas como adaptação. Exemplos dessas plantas são as Staurogyne sp., Cryptocoryne e H. pinatifida. Contudo, atém mesmo elas começam a tolerar pequenas mudanças quando se tornam esporádicas o suficiente para serem reconhecidas pelas plantas. Na última desmontagem do meu aquário consegui manter, por pura experiência mesmo (eu queria saber até quando poderiam suportar), um punhado enorme de Staurogynes dentro de um balde sem CO2, sem luz e sem nutrientes por quase 1 mês até começarem a perder as folhas e declinarem rapidamente. Elas estavam tão fortes metabolicamente que sobreviveram apenas de seus estoques mantendo boa saúde por muito mais tempo que se poderia esperar. Isso me fez lembrar de um experimento que li quando estava na universidade, sobre o reforço intermitente: quando um rato era posto para nadar numa bacia com água sem nada que pudesse se segurar para descansar, ele se afogava dentro de 30 minutos. No entanto, se depois de vinte minutos era posto uma plataforma para ele descansar por 10 minutos e em seguida posto para nadar novamente, o rato nadava por incríveis 5 horas porque ele esperava que a plataforma voltaria a qualquer momento. Ele nem chegava a morrer afogado, morria de exaustão, de acidose oriundo do ácido lático pelo esforço prolongado. Metabolicamente isso acontece também, às vezes precisamos fazer o sistema “nadar” um pouco e se acostumar com o “ácido lático” para que esteja preparado para nadar por 3 dias se for preciso, exatamente como as Staurogynes sobreviveram com notável saúde em um balde por quase um mês. Qual era a chance de eu ter algas por um vacilo com essas Staurogynes? Na prática, nenhuma.

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Figura 3 – Cryptocorynes em condições selvagens. Seguidas inundações e carregamento de nutrientes pelas chuvas torrenciais na sequência de períodos de estiagem tornam os indivíduos muito mais fortes e vigorosos.

 

Essa prática não é recomendada para aquaristas de concursos, uma vez que o objetivo das montagens é cumprido muito rapidamente e não há intenção de prolongar a vida do sistema na maioria dos casos. Contudo, se tratando de sistemas que visam o longo prazo e sustentabilidade, aplicar esse tipo de hormese, incluindo podas em diferentes alturas, modulações na iluminação e temperatura, volumes diferentes de TPAs etc, fortalece as plantas, os animais e ajuda a impedir que esporos de algas consigam encontrar janelas de oportunidades ambientais para se estabelecerem como fruto de condições estagnadas. No que diz respeito aos animais isso também pode ser aplicado. Oferecer rações com diferentes composições, bem como submetê-los a períodos aleatórios de jejum fortalecerá seu sistema imunológico e os tornará mais ativos.

Visto isso, é desejável que o aquarista o entenda o equilíbrio como um processo de alternância de estados e da ocorrência de pequenas adversidades que podem ser facilmente vencidas pelo aquário. Um processo mutável em franco movimento ao invés de uma fotografia no tempo e espaço, com condições engessadas e respostas automatizadas, mesmo que orgânicas. Logo, a estabilidade é um produto da auto regulação do equilíbrio e não pode ser vista como algo estático, inflexível.