Dissecando o glutaraldeído

Dissecando o glutaraldeído

Por Eduardo Fonseca Jr

27/07/2024

 

“Uma das lições mais tristes da história é esta: se já fomos enganados por tempo suficiente, tendemos a rejeitar qualquer evidência de tal engano. Não estamos mais interessados ​​em descobrir a verdade. O engano nos capturou. É simplesmente muito doloroso reconhecer, até para nós mesmos, que sucumbimos ao engano. Uma vez que você dá poder a um charlatão sobre si próprio, quase nunca o tem de volta.”

Carl Sagan

O aquarismo, seja ele de água doce, marinho ou plantado, por se aproximar muito de um ecossistema, depende de leis físicas, químicas e biológicas para existir. Talvez seja um dos hobbies mais difíceis porque se faz necessário o entendimento de pelo menos o básico dessas leis e isso só possível quando as pessoas estudam minimamente o que estão fazendo; sem querer, as pessoas estão lidando com ciência. É difícil imaginar esse hobby dar certo se o aquarista não gosta ou não acredita em ciência, da mesma forma que é impossível um aeromodelista conseguir subir seus aviões sem saber pelo menos o básico necessário sobre física e aerodinâmica. Tal como aviões precisam ter formatos e dimensões que respeitem as leis físicas, o aquário também precisa ter um “formato” que respeite as leis biológicas. Será que existem tanto aeromodelistas que ignoram ou desprezam a física quanto existem aquaristas (ou aspirantes) que o fazem com a biologia e a química? Acredito que não por um motivo muito simples: os aviões não sobem ou, se sobem, logo caem e se espatifam. A física é um aspecto da natureza muito brutal, imediato e punitivo. Ela não dá uma segunda chance e nos mostra sua vontade irredutível apesar de todas as nossas expectativas. A parte boa é que você aprende rápido; mesmo sem o atalho do estudo, qualquer pessoa sem saber ler e escrever pode descobrir como subir um avião por tentativa e erro relativamente muito rápido se seus recursos forem vastos. E o aquário? O aquário não. Suas leis são lentas, complexas, confusas, cheias de variáveis imprevisíveis pela simples observação. Demoraríamos décadas para descobrirmos o “formato” correto e foi o que demoramos. O aquário plantado levou cerca de 15 anos (considerando seus primórdios nos anos 90) para amadurecer e termos mais ciência dos seus mecanismos, mas ouso dizer que conseguimos muito mais pela tentativa e erro que pelo estudo. O lado ruim disso é que a tentativa e erro mantém obscuras as disciplinas de conhecimento relacionadas à vida do aquário ou, em outras palavras, cria lacunas que podem ser preenchidas por argumentos pseudocientíficos que faz as pessoas caírem como patinhos nas narrativas comerciais. É por isso que existem tantos produtos inúteis criados com propostas boas demais para ser verdade. Mas quem está imune a essas coisas? Quem teria o poder de analisar friamente as propostas e julgar sobriamente se existe alguma chance real de serem verdadeiras? Somente quem domina todas essas disciplinas e não podemos esperar isso do aquarista comum, não seria justo. O aquarista precisaria se formar numa universidade para alcançar esse nível e ainda precisaria ter sido um aluno muito esperto. Sendo assim, deveria ser um compromisso dos aquaristas mais entendidos ajudar na tarefa de trazer as informações verdadeiras e serem os verdadeiros guardiões do hobby em contrapartida aos “influencers” recrutados pelas marcas para difundir ainda mais suas bobagens ou desinformações.

Um desses produtos é o tal do “carbono líquido” ou “carbono orgânico”, o qual, a partir de agora vamos chamá-lo abertamente de glutaraldeído, como tem de ser. O glutaraldeído é certamente a coisa mais misteriosa do aquário plantado, com muito mais histórias e promessas que explicações. De onde veio essa ideia? Qual é o seu verdadeiro efeito? Devemos acreditar nos argumentos comerciais? O aquário depende do seu uso? Esse artigo vai tentar esclarecer todas essas perguntas de uma vez por todas, pelo menos de quem o ler. Se você não se interessa pelo mecanismo químico do glutaraldeído, não precisa ler esse artigo. De fato, não o escrevi para que as pessoas o lessem como os outros artigos, para extrair lições práticas de seus aquários. Não, esse artigo é um documento de defesa à disposição daqueles que, por alguma razão, queiram ou precisem saber como o glutaraldeído funciona para, enfim, arbitrar o que é melhor para si. Há muita discussão sobre esse tema na internet e se tornou uma bruxa voadora que cada um que a vê a descreve de uma forma diferente. Quero unificar a compreensão desse assunto, organizá-lo, torná-lo rigoroso, inclusive na esperança de que pessoas que saibam mais do que eu possam complementá-lo com mais dados ou, quem sabe, refutá-lo com argumentos melhores baseado em pesquisas mais modernas que, por alguma razão, não consegui encontrar.

Não estou advogando contra o uso do glutaraldeído no aquário plantado, embora eu mesmo não use há alguns anos, mas sinto que é preciso nivelar a compreensão das coisas para o aquarista comum diante dos argumentos comerciais para então, ele sim, arbitrar o que fazer. Se eu não fizer esse trabalho, quem vai? Os representantes comerciais das marcas? Os lojistas? As próprias marcas? Por que fariam isso? As grandes marcas provindas de grandes laboratórios conhecem seus próprios argumentos, mas e as marcas menores que reembalam os mesmos produtos sob nomes diferentes polvilhados em promessas ligeiramente diferentes? Eu duvido que saibam. Aliás, acho até que subestimam a compreensão das pessoas profanando princípios químicos, biológicos e até matemáticos. Será que eles mesmos acreditam nas coisas que dizem? Se dizem que sabem, eu os desafio: derrubem esse artigo com uma ciência melhor que a minha, caso contrário, podem seguir fazendo de conta que ele não foi escrito ou apostar no consumidor que não lê. Da minha parte, vou fazendo a minha parte. Ao leitor que quiser saber mais, fique comigo até o fim e reserve um pouco de paciência consigo próprio, pois mesmo que não entenda tudo, se ler com atenção, provavelmente entenderá o suficiente. Vamos por partes…

Primeiro, vamos estudar o que é um aldeído. Um aldeído, basicamente, é uma molécula contendo um ou mais carbonos em cadeia com uma terminação carbonila (C = O) e um hidrogênio ligado ao carbono da carbonila.

Vamos salientar algumas coisas que podem facilitar o entendimento de conteúdos futuros. Note que cada carbono PRECISA admitir quatro ligações, o oxigênio duas e o hidrogênio apenas uma. O R representa o radical que nada mais é que qualquer conformação molecular ligada ao grupo de interesse; é como se um fosse um restante da molécula X. Quero representar formalmente como R porque é como vão encontrar na literatura científica, caso se deparem ou tenham o interesse de se envolver com esse tipo de conteúdo. Aproveitando o ensejo, vejam como se chamam outros tipos de terminações que podem ser úteis mais adiante:


Perca algum tempo observando essas moléculas e note sempre as quatro ligações necessárias do carbono, as duas do oxigênio e a única do hidrogênio. Isso pode ser útil. Note também que o R pode ser uma cadeia de outros carbonos ligados a hidrogênios, cada uma com seu próprio nome (prefixo), a saber: com um único carbono = metil; dois carbonos = etil; três carbonos = propil; quatro carbonos = butil; cinco carbonos = pentil etc. Não importa o tamanho da cadeia de carbonos, cada um deles ainda precisa completar (saturar) suas quatro ligações, geralmente com hidrogênios. Junta-se, dessa forma, o prefixo (radical) ao grupo terminal para ter o nome da molécula.

E o glutaraldeído? Bem, o prefixo “gluta” remete ao pentil, mas com as duas pontas iguais, ou seja, é uma molécula simétrica de cinco carbonos com as duas terminações iguais. Dessa forma, o glutaraldeído é quase um pentanal, mas com um aldeído também na outra ponta, podendo ser, portanto, também chamado de pentanedial ou “pentano-di-aldeído”. Se as terminações fossem de ácido, por exemplo, então seria ácido glutárico. Se fosse di-alcool, seria pentileno-glicol. Quando se entende os nomes não fica mais tão assustador assim, certo?

É mais fácil estudar uma coisa que pode ser vista, uma coisa que se torna real. Eis uma molécula pura de glutaraldeído (sua forma monomérica), antes de qualquer reação com a água. Podemos notar que os oxigênios dos grupos aldeídos estão bastante expostos e, como é da natureza altamente eletronegativa do oxigênio, estão sempre disponíveis para interferir em outras moléculas. Os hidrogênios dos aldeídos também podem ser trocados por oxigênios ou por hidroxilas OH e se tornarem igualmente reativos. Isso faz com que o glutaraldeído tenha até quatro “pernas” de ligação, o que chamamos de polimerização. Essa polimerização pode ocorrer entre as próprias moléculas de glutaraldeído quando dissolvidas em água e as suas várias conformações moleculares são bastante afetadas pelo pH. Mas antes que avancemos mais nesse estudo para compreendermos como ele agride as algas, vamos simplificar um pouco mais as coisas enxugando a representação molecular do glutaraldeído:


É assim que as moléculas são representadas na literatura técnica, exceto os sinais de (+) que eu propositalmente coloquei para enxergarmos a atividade das carbonilas. Cada vértice representa um carbono, embora os hidrogênios da sua saturação estejam omitidos. Essa representação ajuda a observar o que realmente importa, os grupos reagindo, sejam álcoois, ácidos, aldeídos ou acetais. Chegaremos nos acetais mais tarde.

Agora vamos nos voltar aos (+); esses oxigênios estão disponíveis para se ligarem ou trocarem de lugar com outras moléculas. O nitrogênio, na verdade, o nitrogênio das aminas, se encaixa muito bem no lugar dos oxigênios. As aminas são segmentos orgânicos derivados do NH3 que, quando combinadas nas cadeias de carbono, constituem os aminoácidos. Uma cadeia de aminoácidos consiste nas proteínas. O glutaraldeído também pode se ligar aos grupos tiol (terminações S-H) das proteínas de forma semelhante, mas vamos nos ater às aminas para efeito didático.

Não vamos entrar em detalhes sobre a formação das proteínas. O que nos importa saber nesse momento é que elas têm várias conexões amina NH2 que podem se ligar ao glutaraldeído. Essa propriedade do glutaraldeído é utilizada na “fixação” de tecidos orgânicos e couro. Fixar significa estabilizar, impedir que elas se dispersem ou se decomponham, meio que formando um polímero, mas com proteínas. Na literatura técnica isso é chamado de crosslinking. Isso é exatamente o que faz o formaldeído; ele embalsama as proteínas. Contudo, se tratando de proteínas em células vivas, apesar de manter suas estruturas, elas perdem a função, ou seja, as proteínas morrem. Nesse contexto, o glutaraldeído é altamente tóxico, especialmente para organismos aquáticos. É preciso salientar que embora o mecanismo de ação do glutaraldeído é similar ao formaldeído, está errado afirmar que o primeiro se decompõe no segundo. O glutaraldeído NÃO se decompõe em formaldeído. Isso já foi amplamente observado em experimentos, e é por essa razão que o risco cancerígeno do glutaraldeído já foi refutado, embora isso não tenha nada a ver com seu alto potencial toxicológico.


No aquário plantado, o crosslinking do glutaraldeído é o que destrói as algas, mas também destrói bactérias, peixes, plantas e, quem sabe, no longo prazo, o silicone dos vidros. Embora o glutaraldeído seja o agente esterilizante ideal para materiais hospitalares que não podem ser submetidos à alta temperatura e pressão das autoclaves como borracha, plástico e silicone, não sabemos se ele altera as propriedades e a segurança do silicone dos vidros depois de muitos anos como algumas pessoas dizem. Se isso ocorre, a vida útil dos aquários poderia perder alguns anos depois de uma década, o que talvez não seja um grande problema, uma vez que é recomendado a troca dos aquários bem antes desse tempo por outras razões. Mas voltando ao seu poder biocida, precisamos destacar algumas de suas propriedades químicas no meio aquoso para entender melhor como ele funciona.

Na água, o glutaraldeído pode assumir várias formas, algumas mais ativas que outras. Ele é mais estável em pH abaixo de 7, embora seja menos reativo, por causa de sua forma hemiacetal cíclica. Ele ainda é reativo na forma cíclica, mas menos do que se estivesse aberto, pois é mais difícil de desfazer o anel para admitir as aminas.

E uma vez na forma de hemiacetal cíclico, ele pode polimerizar com outros hemiacetais, diminuindo cada vez mais seu poder biocida pela redução do número de conexões com as aminas.

E olha só quem encontramos! O tal “poliglutaracetal”! Eu já ouvi esse nome antes e acho que você também. Chamar a polimerização do hemiacetal cíclico de poliglutaracetal é como falar pássaro “voador alado”, ou carneiro “montês das montanhas” ou ainda tartaruga “marinha aquática”. O que essa molécula tem de mais poderoso que o próprio glutaraldeído? Nada, ele é MENOS poderoso que o glutaraldeído. Na verdade, seu poder biocida está se degradando, caindo pela metade, já que duas moléculas com duas pernas de ligação cada foram reduzidas a um par com duas pernas ativas cada. E isso só vai piorando de forma irreversível com mais moléculas aumentando a cadeia sem aumentar a quantidade de pernas ativas, que será sempre…. duas! É como ter um sobrenome estrangeiro que soa elegante, mas que significa meramente “filho do chapeleiro”.

Já em pH mais alcalino, quase não há a formação de hemiacetal, mas sim a polimerização dos monômeros formando o alfa-beta-poliglutaraldeído insaturado.

E mais uma vez a polimerização diminui drasticamente as pernas de ligação do glutaraldeído. Mesmo polimerizado, o glutaraldeído ainda pode se ligar às aminas das proteínas, mas com menos sítios. Contudo, em pH mais alto, mesmo tendendo a polimerizar mais, sua ligação com as aminas se torna mais favorável. É por isso que ele deve ser usado no período de escuro do aquário, quando o pH está mais alto, quando o objetivo é controlar algas, mesmo com o inconveniente da polimerização mais acelerada. E é por isso também que é preciso usá-lo todos os dias para que seu efeito seja constante e cumulativo. Veja que apesar de tudo, não é de um dia para o outro que as doses anteriores desaparecem, mas podem persistir por vários dias. Se usarmos todos os dias, as doses vão se somando aos resíduos das doses anteriores alcançando a concentração ativa máxima ao fim do período de meia vida do glutaraldeído nas condições específicas do aquário, que pode ser de dez, quinze, vinte dias ou um pouco mais.

A real estimativa da meia vida do glutaraldeído dissolvido na água depende drasticamente de muitos fatores. Em pH alcalino é esperado que se degrade cerca de 30% mais rapidamente que em solução ácida e se torna mais lento quanto mais o pH cai. A presença abundante do oxigênio também o degrada mais rapidamente, convertendo-o a ácido glutárico e, posteriormente, a CO2. A temperatura, na medida em que sobe, catalisa mais rapidamente as polimerizações. Nas condições orgânicas do aquário plantado podemos esperar uma meia vida de mais ou menos 14 dias, mas uma fração significativa pode permanecer ativa por até 30 dias. Tudo depende da vasta diversidade molecular que o glutaraldeído pode assumir conforme as várias condições a que for exposto, sobretudo pH e temperatura.

Obviamente, não precisamos, nem faz sentido, estudarmos todas essas formas moleculares, como elas evoluem, em quais condições e quais são mais ou menos reativas, ou mais ou menos estáveis. Já temos o necessário para pensar a respeito de questões mais importantes para nós aquaristas. Então vamos perguntar.

O glutaraldeído pode mesmo acabar com as algas?

            Vamos partir da proposta mais óbvia do glutaraldeído: combater as algas. Para ter alguma chance de fazer sentido, ele precisaria ser bem utilizado; dosado no período de escuro quando o pH está mais alto e usado todos os dias sistematicamente para que as doses recentes se acumulem com os resíduos ativos das doses anteriores.

Sendo assim, qual a concentração ativa final estimada, considerando uma meia vida de quinze dias e uma dose diária de 5 mL?

Dia 15 = 5 mL; dia 14 = < 5mL (decaído); n…; dia 1 = 2,5 mL (50%, ou meia vida). Se considerar a degradação do glutaraldeído como uma curva linear, teríamos um gráfico hipotético muito próximo deste (sem troca parcial de água nesse período para não abater a concentração):

Ao final de 15 dias teríamos dosado um total de 75 mL de glutaraldeído no aquário, dos quais 25% já teria degradado ou polimerizado. Dessa forma, ainda teríamos 55 mL ainda ativo no aquário. Considerando um aquário de 100 litros, haveria 0,55 mL/L de glutaraldeído dissolvido. Mas agora precisamos prestar muita atenção: as soluções de glutaraldeído geralmente são vendidas a 2%, salvo aplicações específicas e regulamentadas. Dessa maneira, teríamos uma concentração real de glutaraldeído dissolvido de 0,011 mL/L. Isso é muito ou é pouco para exercer seu poder biocida contra as algas? E se a concentração necessária para efetivamente combater as algas seja a mesma ou até superior àquela suficiente para destruir as colônias do biofiltro, já que o glutaraldeído é eficaz na destruição das bactérias gram negativas e positivas (bem, é para isso que ele é usado nos hospitais)? Essa é uma pergunta boa a se fazer. Por que o glutaraldeído convenientemente destruiria as algas eucariontes (células mais complexas) antes da microbiologia procarionte (células mais simples)?… Essa é a pergunta correta. Talvez a dose recomendada pelos fabricantes seja mesmo inferior ao necessário para afetar as algas e os usuários estariam tentando derrubar elefantes com estilingue. Se tentarem subir, podem destruir o biofiltro antes das algas, ou quem sabe até os peixes. Na prática médica, o glutaraldeído é utilizado puro (solução a 2% ou mais) em imersão por até dez horas para destruir esporos e bactérias. Isso equivale a uma concentração de 180 mil vezes àquela que acabamos de calcular considerando uma concentração acumulada de 15 dias!!! Se não entende o que esse número quer dizer, pense o seguinte: se reduzíssemos a radiação necessária para matar uma pessoa em 180 mil vezes, teríamos uma quantidade de radiação menor que a de uma banana. Será que é mesmo suficiente? Baseado nesses números, acreditar no glutaraldeído como um agente algicida no aquário plantado numa dose “amigável” ao biofiltro, animais e plantas é mais uma questão de fé do que de lógica.

E eu encontrei algumas respostas. Só queria que vocês sentissem os números melhor. Uma certa pesquisa experimental (Pereira et al, 2013) encontrou as seguintes concentrações de toxicidade do glutaraldeído para organismos aquáticos de água doce: Chlamydomonas reinhardtii (alga verde) = 14,6 mg/L; Chlorella vulgaris (alga verde) = 31,3 mg/L; Pseudokirchneriella subcapitata (alga verde) = 12,3 mg/L e entre alguns outros organismos, o Danio rerio (paulistinha) = 5,5 mg/L. Um detalhe importante: esse estudo foi feito com glutaraldeído a 50%, 100 vezes mais concentrado que o que usamos no aquário. Obviamente, esses resultados devem variar conforme mudança de parâmetros como pH, condutividade, alcalinidade, temperatura etc, mas os resultados médios não devem se afastar tanto assim. Mesmo se essas pesquisas encontrassem valores de toxicidade de 1 mg/L com glutaraldeído a 2%, ainda seria necessário dosar 100 mL de glutaraldeído num aquário de 100 litros. Estamos mesmo dando pedrada em elefantes afinal… Não existe uma definição melhor para a homeopatia.

Então fica a pergunta: o glutaraldeído pode pelo menos ajudar a controlar as algas? Sim pode, mas não na concentração usada nos aquários e se a dose for elevada até lá, digamos umas dez ou cem vezes mais, toda a vida no aquário seria destruída. A resposta prática, portanto, é não.

O glutaraldeído pode nutrir as plantas como fonte alternativa de carbono para a fotossíntese?

Aqui está a grande caixa preta do assunto. Ninguém nunca conseguiu explicar como isso funciona. Aliás, recentemente vi uma explicação, ou uma tentativa de explicação, de que o glutaraldeído se decomporia em CO2 e, aí sim, poderia ser utilizado pelas plantas. Bem, isso é verdade, o glutaraldeído, quando em condições aeróbicas, pode formar ácido glutárico e este pode lentamente se decompor em CO2, mas ácidos carboxílicos com mais de quatro carbonos são oleosos, viscosos e bem menos solúveis em água. Se essa realmente fosse a proposta, por que usar um agente com potencial tão tóxico, com tendência a se polimerizar, relativamente pouco solúvel em água? Por que não usaram então o próprio ácido glutárico, ou melhor, um ácido carboxílico com menos de cinco carbonos que teria uma solubilidade melhor e degradação mais rápida? Mas vamos dar uma colher de chá e fazer de conta que aceitamos esse argumento e considerar que 100% do glutaraldeído seria degradado em CO2 produzindo, dessa forma, cinco moléculas de CO2 cada molécula de glutaraldeído (o que seria totalmente espúrio, mas daremos uma chance).

Administrando uma dose diária de 5 mL por dia num aquário de 100 litros, sabendo que o glutaraldeído pesa cinco vezes mais que a água, teríamos uma concentração final diluída de 25 g/100 litros, ou 250 mg/L. Temos 60% desse peso em átomos de carbono, ou 150 mg/L, os quais teriam de se ligar a dois oxigênios cada para formar CO2. Após um longo cálculo estequiométrico, teríamos 950 mg/L de CO2 formado. Parece promissor, não? Seria, se a dose fosse de glutaraldeído a 100%, mas como é a 2% (no máximo), então temos um pouco menos de 20 mg/L. Isso num mundo ideal em que 100% do glutaraldeído fosse degradado a CO2, sem polimerizar, sem formar qualquer outro tipo de resíduo. E não acabou, esses 20 mg/L de CO2 seria por dia, numa única dose, que rapidamente seria consumido pelas plantas, volatilizado ou convertido a outra coisa, como bicarbonato. Se sua degradação a CO2 fosse instantânea, o que sabemos que não é devido a sua baixa solubilidade, haveria apenas um pico de 20 mg/L de CO2 no momento da injeção. Experimente desligar o CO2 do aquário quando chegar a 20 ppm e espere para ver em quanto tempo ele vai voltar abaixo de 5 ppm. Como sustentar um fotoperíodo de 7 horas? Aliás, todo esse cálculo é para chutar cachorro morto. Basta medir o CO2 do aquário antes e depois de uma dose de glutaraldeído para ver se algo muda. Meça imediatamente à dose, uma hora depois, duas horas depois, três, até o fim do fotoperíodo e verá uma linha tão reta quanto o eletrocardiograma de um tijolo.

Outro argumento existente, embora bem menos proferido, é o mais obscuro: o de que o glutaraldeído, ou qualquer uma de suas formas (aí que entra o tal do “poliglutaracetal” fazendo pegadas andando de costas) poderia não servir de fonte de CO2, mas funcionar como uma fonte de carbono diretamente na respiração celular das plantas, lá no Ciclo de Krebs (o Ciclo de Krebs está detalhado no Livro 2, não vou entrar nesse detalhe) pulando o metabolismo de Calvin (também está no Livro 2). Poucas pessoas se atrevem a discursar sobre isso porque é realmente muito difícil falar sobre isso para as pessoas sem nenhum conhecimento em metabolismo energético, mas posso tentar.

Bem, o Ciclo de Calvin é bem de forma geral um mecanismo pelo qual uma enzima chamada RuBisCO se liga ao CO2 e água e os transforma em moléculas simples de açúcar contendo três carbonos cada (por isso o Ciclo de Calvin é também chamado de Ciclo C3). Esse mecanismo está dentro da parte síntese da fotossíntese e ocorre dentro dos cloroplastos, o compartimento verde das células vegetais. Uma parte desses açúcares são posteriormente metabolizados em outros compartimentos celulares, as mitocôndrias, para produção de energia na forma de glicose. Esses mecanismos, entre eles o próprio Ciclo de Krebs, consistem na respiração celular e já estão fora do processo da fotossíntese. O glutaraldeído agiria como uma molécula alternativa à glicose ou seus derivados (sacarose, piruvato etc.) como combustível para a respiração celular. De onde veio essa ideia? Não sabemos, ninguém sabe, porque nunca foi encontrado nenhum artigo científico ou descrição técnica relatando essa possibilidade EM PLANTAS, mas em ratos sim. Vamos olhar isso mais de perto.

Há um artigo de 1987 em inglês de título “The oxidation of glutaraldehyde by rat tissues” (“Oxidação do glutaraldeído por tecidos de ratos”) que apresenta uma preocupação sobre o uso do glutaraldeído como constituinte de resinas restauradoras feitas por dentistas (olha só o glutaraldeído sendo usado como polimerizante de resinas ortodônticas). Essas resinas poderiam liberar resíduos de glutaraldeído ao organismo humano, mas poderiam ser tóxicos? O artigo de apenas três páginas segue dizendo que experimentos com ratos constataram que o glutaraldeído pode ser oxidado no Ciclo de Krebs pelos tecidos vivos de ratos, principalmente nas células renais. A evidência foi que a produção de CO2 resultante da respiração das mitocôndrias aumentou drasticamente logo depois que aplicaram glutaraldeído sobre as células (aparentemente, não experimentaram em ratos vivos, mas sim em fatias de tecidos vivos), ou seja, o glutaraldeído realmente estava sendo oxidado como se fosse açúcar. E ponto final. Os dentistas teriam ficado satisfeitos com esse artigo, pois poderiam tapar as cáries tranquilamente sem expor seus pacientes a qualquer efeito tóxico do glutaraldeído. Mas em que parte do Ciclo de Krebs o glutaraldeído pode se infiltrar? Essa informação simplesmente não existe em lugar nenhum. Talvez não seja relevante. Podemos pesquisar “glutaraldehyde oxidation by plant tissues” ou “glutaraldehyde metabolism by plant Krebs Cycle”… não há nada. O único motivo de acreditar que o glutaraldeído pode ser oxidado na respiração das plantas é porque elas também têm mitocôndrias.

Sendo assim, supondo que seja verdade, voltamos a cair no mesmo problema do glutaraldeído se decompondo em CO2 depois de formar ácido glutárico: é o suficiente? Claro que não, nem chega perto. É como achar que se pode alimentar uma jaula de leões com um pacote de salsicha. Seria preciso muito glutaraldeído constantemente entrando nas plantas e preenchendo o Ciclo de Krebs para sustentar o desenvolvimento das plantas. E mesmo que fosse possível, deixando uma bolsa de soro de glutaraldeído gotejando no aquário o fotoperíodo todo, o que aconteceria com o Ciclo de Calvin sem CO2 suficiente destruindo a RuBisCO fazendo fotorrespiração por se ligar ao O2? Seria possível manter plantas lhes dando comida sem que elas precisem fabricar a própria pela fotossíntese, como se fossem cães? Esse é um mundo maluco demais para se viver.

Como vimos, amigos, existe um edifício teórico sólido demais para um argumento impostor dessa natureza fazer sentido. Há muitas sentinelas a postos, como muralhas intransponíveis a argumentos espúrios. Mas para se defender deles é preciso conhecimento ou saber onde encontrá-lo e como encontrá-lo. Essa bruxa do glutaraldeído é realmente bastante complexa para quem é refém da falta de informações completas, eu entendo isso e não teria como ser diferente. Pegaram pesado e infelizmente é preciso muito mais poder de informação para combater a desinformação do que é preciso de narrativas para produzir uma desinformação. Narrativas são fáceis de acreditar, elas voam sobre os muros da fortaleza da verdade produzindo imagens mentais fáceis de construir do tipo “se eu imagino, pode ser verdade” como cavalos alados ou dragões cuspidores de fogo, ou convencem aqueles que estão ansiosos para que a realidade fosse diferente. Assim nascem os mitos e, infelizmente, mitos que sobrevivem por tempo suficiente acabam se tornando imortais.

Mas por que tanto trabalho para combater este mito? Eu devolvo a pergunta: por que sustentam tanto esse mito? O sistema de CO2 não é nem de longe o recurso mais caro de um aquário plantado, a iluminação e a filtragem biológica são recursos bem mais caros, mas por que tanta implicância com o CO2? Há teorias comerciais para isso também. Eles dizem que a porta de entrada para o hobby é pelos aquários “low tech”, daqueles aquaristas que entram sem querer investir muito, com quase nenhum (ou nenhum de fato) conhecimento sobre aquários, que entraram simplesmente porque acharam as plantas bonitas e gostariam de ter em casa. O glutaraldeído seria uma “muleta” para lhes atender “meia boca”, dar “meio resultado”, para mantê-los no hobby tempo suficiente para decidirem se aumentam o nível ou se vão embora em busca de outras coisas para gastarem seu dinheiro. Entendo essa preocupação “cheia de boas intenções” para com o mercado, mas seria essa mesmo a melhor forma de introduzir as pessoas no hobby? O glutaraldeído poderia pelo menos dar “meio resultado” na medida da satisfação ou no mesmo nível do conhecimento ou exigência do aquarista iniciante? Meus amigos, não existe “meio resultado” no aquário plantado, da mesma forma que não existe um sujeito “meio saudável”. Usar glutaraldeído para combater as algas ou proporcionar uma fonte de carbono alternativa para plantas menos exigentes em aquários mais simples não é como por álcool em carro flex e ter menos desempenho. É ter desempenho nenhum. Acho mais justo, mais leal e elegante não oferecer nada no lugar do CO2 e fazer esses clientes entenderem que é aquilo que terão sem CO2. Alguns clientes vão achar ótimo e está tudo bem. Mas fazê-los acreditar que existe um “quebra galho” é explorar o mercado e proporcionar frustração aos iniciantes.

Todo produto gera expectativas e essas expectativas não são mensuráveis, mas podem ser percebidas tanto na ausência quanto na presença de resultados. Quando as pessoas acreditam nessas expectativas, desvia-se o foco delas de onde elas deveriam estar olhando porque esses produtos lhes tapam um olho. O mercado está cheio desses tapa olhos. Como ajudar um iniciante que está com suas plantas definhando por falta de CO2 se ele acredita que essa não pode ser a causa porque o glutaraldeído deveria estar fazendo isso? Muitas vezes, antes que eles acreditem nos argumentos verdadeiros e sejam convencidos a investir um pouco mais de dinheiro, eles desistem e alimentam a estigma de que os aquários “dão muito trabalho” e enquanto isso o mercado não cresce, sendo o nicho do nicho, repleto de gente falando bobagens. Fico imaginando uma pessoa entrando no hobby agora, em 2024, na era das redes sociais, influencers, canais de Youtube e vídeos curtos do TikTok com menos de 1 minuto que mal dá pra ler as legendas, num tiroteio de informações, falsas e verdadeiras. É prudente que se preste atenção nas marcas, certo? Mas lá estão elas próprias explorando a ingenuidade do mercado criando bruxas como o ferro que avermelha as plantas, os ozonizadores que se livram das algas, as pastilhas férteis que prolongam a vida útil do substrato, os aceleradores biológicos que antecipam com segurança a entrada dos peixes no aquário e o carbono líquido que auxilia a fotossíntese.

Parte do trabalho dos aquaristas mais experientes e estudados é matar essas bruxas uma a uma para que o hobby permaneça sóbrio e satisfatório. Devemos manter a livre discussão de ideias a todo vapor, mesmo que cultivemos pensamentos diferentes, desde que sejam sinceros e calçados em resultados práticos. É possível que teorias rivais sejam complementares. Isso é sadio e sempre apoiarei essas diferenças, mas a desinformação e a narrativa comercial que cria demanda para produtos inúteis, jamais.

REFERÊNCIAS

QIN, S., ZEYDEN, M., OLDENZIEL, W. H., CREMERS, T. I. F. H. e WESTERINK, B. H. C. Microsensors for in vitro measurement of glutamate in brin tissue. Sensors. 2008, vol. 8, pp.6860-6884.

SANTOS, M. C. M., DUARTE, G. V., CARVALHO, L., MOTA, A. P. e CRUZ, J. F. W. Desinfecção de moldes. Revista de Ciências Médicas e Biológicas. 2005, vol.4, n.1, pp.32-37.

MIGNEAULT, I., DARTIGUENAVE, C., BERTRAND, M. J. e WALDRON, K. C. Glutaraldehyde: behavior in aqueous solution, reaction with proteins, and application to enzyme crosslinking. Bio Techniques. 2004, vol.37, n.5, pp.790-802.

GHAFOOR, D., KHAN, Z., KHAN, A., UALIYEVA, D. e ZAMAN, N. Excessive use of disinfectants against COVID-19 posing a potential threat to living beings. Current Research in Toxicology. 2021, vol.2, pp.159-168.

HOPWOOD, D. Theoretical and practical aspects of glutaraldehyde. Histochemical Journal. 1972, vol.4, pp.267-303.

THURMAN, R. G. Alcohol and aldehyde metabolizing systems. Biochemical Education. 1980, vol.9, n.3, pp.115.

GAZOTTI, W. A., RODRIGUES, M. A. e PAOLI, M. A. Estabilidade de compostos de borracha de EPDM e de borracha natural perante solução de glutaraldeído. Polímeros: Ciência e Tecnologia. 1992, pp.26-30.

PEREIRA, S. P. P., OLIVEIRA, R., COELHO, S., MUSSO, C., SOARES, A. M. V. M., DOMINGUES, I. e NOGUEIRA, A. J. A. From sub cellular to community level: toxicity of glutaraldehyde to several aquactic organisms. Science of Total Environment. 2014, pp.147-158.

KARP, W. B., KORB, P. e PASHLEY, D. The oxidation of glutaraldehyde by rat tissue. Pediatric Dentistry. 1987, vol.9, n.4, pp.301-303.

SANO, L. L., KRUEGER, A. M. e LANDRUM, P. F. Chronic toxicity of glutaraldehyde: differential sensitivity of three freshwater organisms. Aquatic Toxicology. 2005, vol.71, pp.283-296.

RICHARDS, F. M. e KNOWLES, J. R. Glutaraldehyde as a protein cross-linkage reagent. Journal of Molecular Biology. 1968, vol.37, pp.231-233.

PACKER, L. e GREVILLE, G. D. Energy-linked oxidation of glutaraldehyde by rat liver mitochondria. FEBS Letters. 1969, vol.3, n.2, pp.112-114.

KIERNAN, J. A. Formaldehyde, formalin, paraformaldehyde and glutaraldehyde: what they are and what they do. Microscopy Today. 2000, vol.1, pp.8-12.

LEUNG, H. W. Aerobic and anaerobic metabolism of glutaraldehyde in a river water-sediment system. Arch. Environ. Contam. Toxicol. 2001, vol.41, pp.267-273.

HABEEB, A. F. S. A. e HIRAMOTO, R. Reaction of proteins with glutaraldehyde. Arch. Biochem. Biophys. 1968, vol.126, pp.16-26.

HOPWOOD, D. Fixatives and fixation: a review. Histochemical Journal. 1969, pp.323-363.